Manuel Vieira de Sousa
Manuel Vieira de Sousa
O desafio aceite de parte a parte pelo pedreiro Gil Enes e pelo carpinteiro João da Câmara provocou alarido entusiasmo no meio da população local. Assim, cada um tomou posição pela simpatia que nutria por cada um dos artífices e pelas aptidões que tinha ou sentia por cada uma destas artes.
Quanto à madeira, não faltava nas redondezas árvores de belo porte da natureza mais variada, como pinheiros, castanheiros, faias, tis, etc, etc. Quanto à pedra, a recente derrocada deixara a céu aberto um bonito lote de pedra, mais do que suficiente para a construção que mestre Gil Enes pretendia levar a cabo. Formaram-se grupos de trabalho cuja primeira missão foi trazer as matérias primas para junto do local da obra.
Marcado o dia para o início das obras, o prior comprometeu-se a celebrar uma missa campal no local destinado à Capela de Nossa Senhora do Loreto, e toda a população se comprometeu a participar no sagrado acto litúrgico oferecendo o seu trabalho numa clara dedicação à Senhora do Loreto.
Como a população não podia abandonar por tempo indeterminado os trabalhos agrícolas, indispensáveis à sua sobrevivência e determinantes para levar a bom termo a empreitada a que se tinham proposto de construir a capela, foram criados grupos de trabalho em função do calendário e programa estabelecidos pelos principais responsáveis pela obra: Gil Enes e João da Câmara.
As obras seguiram sem incidentes graves, apesar dos trabalhos pesados e exigentes.
O carpinteiro João da Câmara aplicou-se muito particularmente na obra do tecto da capela, onde deixou uma referência de qualidade no tecto mudéjar. A arte mudéjar é um estilo artístico, muito divulgado no universo ibérico e que reflecte influências da arte islâmica. De facto, ao olharmos para o tecto da capela de Nossa Senhora do Loreto, vem-nos à memória, muitas das obras que pelo nosso país deixaram os árabes, nos tempos idos em que dominaram muito do território da Península Ibérica.
Já mestre Gil Enes, trabalhou a pedra com muita minúcia e dedicação, com especial referência para o arco, todo em pedra trabalhada, que separa o altar da nave da capela.
Aí, mestre Gil Enes esculpiu as “laranjas” que ainda lá permanecem como se tivessem sido acabadinhas de esculpir. Mas não se pode esquecer todo o trabalho que ainda lá persiste, onde o estilo manuelino da época domina, reflectido em todos os cantos da capela, com destaque para a porta manuelina, a sul da capela.
Dada por concluída a obra, houve uma grande festa, com missa solene na nova capela, que contou com D. Joana d’Eça, a sua família e todos os fidalgos das redondezas que confirmaram o trabalho excepcional ali desenvolvido e reconheceram o extraordinário mérito de mestre Gil Enes, sem desmerecer o trabalho do mestre João da Câmara.
Por tudo isto, foi declarado vencedor do desafio o mestre Gil Enes.
Nessa mesma noite da consagração da capela, uma enorme derrocada cobriu a pedreira. O único resquício que ficou foi o nome ao sítio onde estava. Também mestre Gil Enes não pode continuar a sua actividade. Faleceu pouco tempo depois. Foi a sua última obra. Não terá sido Nossa Senhora que achou que Gil Enes tinha concluído o trabalho na Terra, mas sim a lei da natureza que cumpriu as suas leis face à sua provecta idade.
Enfim, estórias que deturparam a História. Mas é assim que nascem as lendas…