Susana Fernandes
Susana Fernandes
Disseram que a estação quente já tinha ido embora. O calendário assim o confirma.
Disseram que o sol ia ficar mais envergonhado, que as manhãs acordariam com um dourado especial e que quando fosse à rua pusesse o casaco aos ombros, porque as manhãs também estariam mais fresquinhas.
O equinócio foi celebrado já tem uns dias. As montras já vestem esse outono que anunciaram. Até há quem já murmure palavras a anunciar que o Natal não demora muito…
Mas…
Inspiro fundo e não o sinto…
A minha pele transpira o calor que deveria ter sentido somente nos meses de verão.
Continuo a inspirar e a não o sentir…
E sinto saudades…
Então volto lá…
Àqueles dias de início de setembro, de nariz colado na janela da casa em São Roque.
O vidro está a ficar embaciado porque respiro mesmo juntinho a ele.
Os meus olhos estão pregados nas gotas que nesse vidro escorrem. Os tapa-sóis tinham sido abertos pela mãe, logo pela manhã cedo, para ver se entrava um pouco de sol.
Mas hoje as nuvens foram mais fortes e numa briga matinal entre os dois, acabou por ser as nuvens que envolveram o sol num cinzento e fresco dia de outono.
E inspiro profundamente…
Sinto… Finalmente sinto o cheiro que ansiava.
O cheiro da terra molhada pela chuva!
Sente também…
Se não o consegues hoje, vem lá a casa em São Roque, naquela infância que sei que ainda recordas.
Tem espaço para ti junto à vidraça. Podes embaciar os vidros comigo. Daqui a pouco já são vésperas de Natal e os vidros serão ciosamente limpos para a Festa.
Inspira e sente…
Hum como sabe bem o cheiro da terra molhada!
Os chuviscos que lá fora caem, deixam-nos embevecidos, não só porque a chuva da qual tínhamos tantas saudades parece mágica aos nossos olhos, mas porque o cheiro enche-nos a alma… o cheiro da terra molhada pela chuva.
E num ímpeto simultâneo saltamos lá para fora. Já não é suficiente o cheiro. Temos de molhar os pés, sentir a terra. Cheirar e sentir a terra molhada.
Afinal ali em São Roque tínhamos tanto por onde meter os pés na terra.
Não estamos fechados nos apartamentos que hoje nos sufocam, além do calor lá fora.
O espaço em que existimos nessa infância, é verde, é extenso, é povoado de terrenos e campos, árvores e arbustos, casas pequenas de janelas amplas e portas abertas, jardins floridos onde se misturam o brilho das flores com o aroma da salsa e da segurelha que salpicam aqui e ali os canteiros do nosso terreiro, do terreiro do vizinho e dos outros pela freguesia fora.
E saltamos nas poças que já se formam na irregularidade do chão calcetado, inspiramos o cheiro da chuva para expelir as nossas gargalhadas de crianças alegres, soltas e livres que não constipam só porque apanharam as primeiras chuvas do outono…
Vamos para a fazenda. Podem vir todos comigo. Há espaço. A fazenda (da minha infância) é maior que a sala do meu apartamento (de hoje).
O céu pode estar cinzento. As nuvens ganharam a guerra matinal com o sol, mas nós ganhámos o dia em gargalhadas e saltos molhados e quedas na lama em que os camalhões já se transformaram por pularmos de rego em rego.
Há ainda um rasto de cheiro a mosto no ar. As vindimas foram há tão pouco tempo. Folhas da vinha, agora despida dos seus cachos, são espremidas sob os nossos pés, bem como alguns bagos já ressequidos que escaparam aos nossos dedos, sem que os mais velhos reparassem. Parece que a chuva também vem lavar os cestos de vimes que ainda estavam no recanto a secar, depois de acartar tantas uvas. Estão cansados. Vão descansar até o próximo ano, até a próxima vindima.
E é deitados sob a erva húmida que acabamos por ficar no entardecer mágico do outono. O sol voltou a ganhar outra guerra. Afastou todas aquelas nuvens cinzentas que nos brindaram com o cheiro a terra molhada e agora seca-nos a roupa no corpo enquanto se despede lá no horizonte.
Há promessas no ar.
Já todos ansiamos para o dia seguinte e em segredo sonhamos.
Será que amanhã vamos conseguir usar as botas de água para ir para a escola?
É apreciando o sol dourado que pedimos em silêncio que no dia seguinte ele deixe novamente as nuvens ganharem a guerra e permitirem que as gotas de chuva e o cheiro da terra molhada nos acompanhe à escola.