Susana Fernandes
Susana Fernandes
Imagina…
Imagina-te ali no caminho de São Roque,
Onde eras criança e sorrias feliz.
Imagina-te ali no caminho. Sim naquele caminho calcetado com pedras lisas e outras nem tanto.
Algumas pontiagudas e assimétricas que os teus pés descalços pisavam e magoavam-se.
E ali no caminho, continuavas a correr e brincar, a saltar e sorrir. O teu dedo grande do pé sangrava, alguma pele já se tinha colado às pedras do caminho, mas não desistias. Fortalecias.
Não. Não ias a correr para a tua mãe que, em casa, estava completamente absorta nas tarefas domésticas e não tinha tempo para baboseiras dessas.
O sangue entretanto secava, junto com alguma lágrima que envergonhadamente tinhas derramado. O dedo ficava negro, mas a brincadeira prevalecia. E os sorrisos e gargalhadas eram música que ecoava na rua pelo dia fora.
Ali continuavas, até que a mãe chamasse, a dar pontapés naquela bola de trapos, para a qual todos trabalharam com pedacinhos de tecido e meias velhas, e que no início da manhã ostentava algumas vivas cores, mas não chegava inteira ao fim do dia. Encardida e esfarrapada terminaria como nós. Mas ainda serviria para o dia seguinte. Bastava alguns remendos.
Imagina…
Imagina-te ali no caminho. Simplesmente a viver. Somente a ser feliz.
Quando fartos da bola, lá decidíamos jogar às escondidas. E agora é a tua vez de contar. Cabeça rodeada pelos braços e encostada no muro de pedra onde ainda restava alguma cal amarelo que esborratava a tua cara, e o olho a se esgueirar antes de chegar à contagem final para ver se descobrias algum dos amigos onde se teria escondido.
– Apanhei-te! E era a correria pelo caminho abaixo até ao ponto para “riscar”. De trás de portas ou de muros, de cima de árvores, ou meio dos arbustos, um a um ia saindo, saltando, aparecendo e tentava a sorte para chegar primeiro ao ponto e “riscar”.
Ganhando ou perdendo, com zanga ou menos zanga, todos tinham o olhar vibrante e alegre. Podia o nariz estar a pingar, mas nada que a manga da camisola não tratasse.
Felizes e saudáveis com a imaginação sempre a funcionar.
Imagina…
Imagina-te ali no caminho. Sem telemóvel. Sem tablet. Sem te passar pela cabeça ir para casa sentar em frente ao computador jogar ao fortnite. Não. Os teus amigos estavam todos ali, no caminho. E ali estavam as brincadeiras e alegrias, as zangas e amuos, os abraços e gargalhadas, as partidas e as aventuras.
Imagina…
Imagina-te a subir a árvore do terreno do vizinho, e a provar a nêspera que mal começara a amarelecer mas já dizias que estava madura e doce, mesmo amargando na tua boca. O sumo escorria pelo queixo e cá em baixo todos gritavam para apanhares mais e jogar. Depois o silêncio. Um silêncio que provocava um frio na barriga e a face empalidecia. Lá vem ela.
A vizinha vinha ver quem andava nos seus terrenos. Se algum garoto tinha se atrevido a subir às suas árvores. Até o vime já trazia na mão. – Vem cá seu malandro! Gritava ela a ver se alguém respondia de cima da nespereira.
Todos fugiam e escondiam-se rindo até doer a barriga, pois nesse dia era outro que ia ser apanhado. E tu. Tu esperavas silenciosamente. Escondido pelas folhas da árvore até os pés ficarem dormentes e já não saberes onde colocar o rabo dorido, rezando para que ela fosse embora. Com pontaria tocava o sino e era hora de ir rezar o terço. Isto se fosse dia de sorte e não tivesses de esperar o anoitecer para então descer da árvore em segurança.
Imagina…
Imagina-te a correr pelas ervas e no meio do mato. Com cães e gatos, galinhas e até mesmo as ovelhas. Alergias? Não! Não tinhas alergias. Se espirravas era simplesmente porque algo irritou o nariz. Não era preciso correr ao médico e fazer testes de alergias. Isso ia passar e era ali, na rua, no meio da erva, das flores, das folhas, dos animais, da natureza. Quando chegasses a casa, só tinhas de te lavar antes de sentar à mesa para, em família, agradecer a Deus a comida que tinhas na mesa. E mesmo que não fosse a tua comida favorita, não franzias o nariz, nem te atrevias a reclamar. Tinha comer na mesa. Era suficiente e todos estavam felizes por partilhar a refeição.
Imagina…
Sim, imagina-te no caminho de São Roque.
Imagina o ontem. Imagina o hoje.
Hoje há silêncio.
Não há risos, nem vizinhos a chamar. Não há brincadeiras no caminho.
As crianças? Sim, há algumas crianças. Menos que ontem, mas ainda há.
Mas não estão ali a brincar.
Não há tempo. Não há segurança. Não há bolas feitas de meias já esfarrapadas.
As crianças já foram para a escola. Passaram no caminho, mas passaram nos carros dos pais. Nem as ouves ou vês.
E quando terminaram as aulas?
Também já passaram. Novamente no carro dos pais. Algumas (poucas), na camionete.
Mas iam a caminho da academia, da explicação, das mil e uma atividades que têm para preencher o pouco tempo livre que ficou da escola.
E aquelas que já terminaram a escola, a academia, a explicação, os trabalhos de casa, as atividades estão sentadas no seu quarto, de porta fechada, a jogar fornite, com os amigos “virtuais”.
Muitos desses “amigos” com quem nunca se irão cruzar no caminho.
Muitos desses “amigos” a quem nunca darão um abraço ou até mesmo um batatão.
Muitos desses “amigos” com quem nunca darão uma gargalhada até doer a barriga, ou correr juntos pelo caminho fora.
Porque, imagina… nós não escolhemos a infância que tivemos. Mas as crianças de hoje também não!
E o caminho de São Roque, fica cada dia mais silencioso, mais deserto…