Paula Noite
Paula Noite
Truc, truc, malassadas com açúcar. Como neste ano, o Entrudo acontecia no início de março.
Era altura de arranjar uns trapos velhos, rotos, com uma máscara horrenda ou, na falta dela, uma meia de licra enfiada na cabeça ou um pano branco de lençol com dois buracos por onde víamos um mundo com olhos de fantasmas. Corríamos os sítios, batendo a todas as portas em busca de malassadas pela vizinhança, pedindo-as ora por gestos para que não nos reconhecessem pela voz, ou gritando truc truc malassadas com açúcar!
Alertada pela algazarra da pequenada, chegava a dona da casa, lenço amarrado na cabeça, mãos enfarinhadas, com um sorriso rasgado. Olhando-nos com ar matreiro, ia à cozinha trazendo nas mãos as malassadas que pedíramos. O seu sorriso tornava-se então maior. A “partida” estava feita.
Alguns de nós tinham o azar de a brincadeira lhes calhar em sorte. Levantada a máscara, a meia ou o pano, com a malassada na boca puxavam, puxavam; precisamente essa tinha o algodão,” partida” recorrente por essas alturas, mas que sendo Carnaval, ninguém levava a mal.
E como o Carnaval são três dias, passava num ápice com a pequenada ávida de brincadeiras e folia. O mês decorria num frenesim, tal como hoje; porque agora parece que o tempo passa muito mais rápido. Passam então os dias e as efemérides das quais se recheia este mês.
O tempo galopa. A passos largos aproxima-se o tempo da primavera. Primavera que devagarinho vai tingindo os montes de verde; que faz rebentar as folhas novas que passam a vestir as árvores nuas durante uma estação. Brotam também aqui e ali os botões que se vão tingindo de tonalidades fortes e variadas.
Tudo renasce. Tempo de renovação…
As culturas são os trigais verdes, abanados por uma brisa fresca, e outras que começam a “rebentar”. Os pássaros vão chegando já em busca do sol e lá do alto vão marcando as culturas onde se irão alimentar.
Pega-se então em dois paus, amarram-se em cruz. Um esqueleto que será um espantalho, guardião das culturas, amigo do agricultor e do ambiente.
Com roupas velhas, umas calças e uma camisa, veste-se o boneco, enchendo-o de trapos velhos. Uma meia, panos lá dentro e forma-se a sua cabeça. Pintam-se os olhos, a boca, o nariz, e por último um chapéu na cabeça.
E lá vai ele, levado em braços, ocupar o lugar onde permanecerá nos próximos tempos. Plantado. Lá no alto, observa tudo, tendo como cúmplices alguns pássaros que o olham perplexos, pousando por vezes, a medo, no seu ombro ou na cabeça, não se atrevendo a tocar nas culturas. O espantalho continua indiferente, com o olhar fixo numa imensidão verde, numa ondulação suave provocada pelo vento.
É um espantalho onde habitam tantas e tantas histórias.
Histórias de meninos traquinas que rebolando à socapa, correndo e saltando, deixam um rasto de destruição nas culturas por onde passam. História das rugas que sulcam o rosto já velho e cansado, rosto onde num brilho de olhar se encontram ainda alguns sonhos. Uma história de revolta e desespero, do trabalho árduo e de uma vida de miséria; dum rosto crispado, inundado de rugas, abundantemente regadas por gotas de suor. Muitas vezes misturadas com lágrimas. De uma vida miserável de muito trabalho e poucos ganhos.
Desejo recalcado de sair em busca de uma vida melhor.
O espantalho guarda estas e outras histórias. Preocupado, vê o início de uma outra história. Porque de repente tudo mudou. Deixou de ver os amigos espantalhos pelas encostas. O verde que as tingia passou a um amarelo doentio. E o espantalho ganha sentimentos. Uma imensidão de tristeza e preocupação toma conta de si: o rasto de destruição lenta que os humanos iniciaram há já muito tempo. Sem pensar que o planeta dito azul deverá ser a herança daqueles que estão pra vir.
Março, mês repleto de efemérides, celebra o Dia Internacional da Floresta e o Dia Mundial da Água.
Que estas efemérides, não sirvam unicamente para grandes notícias de jornal, mas que levem todos nós a adotar comportamentos responsáveis para com o ambiente. Que todos contribuam para o equilíbrio ambiental e qualidade de vida, preservando e poupando os recursos valiosos para garantir o nosso futuro.
E que naquele espantalho possa habitar mais uma história com um final feliz. Aquela encosta povoar-se-á de muitos espantalhos, numa perspetiva mais ecológica; e vestir-se-á de verde, novamente. A primavera, como outrora, fará renascer e brotar novas vidas, novos rebentos, outras flores…
E em nós a certeza de um planeta com futuro.
“Ensinai aos vossos filhos o que nós ensinamos aos nossos sobre a terra: que a Terra é nossa Mãe e que tudo o que lhe acontece a nós acontece aos filhos da terra.”, in Carta do índio Seattle ao Grande Chefe de Washington