Susana Fernandes
Susana Fernandes
Qualquer altura é boa para recomeçar. Ou simplesmente começar. Depende de ti, da tua vontade e disponibilidade. Da tua necessidade ou do que a vida e o calendário te imponha.
Seja em São Roque, seja em que freguesia for.
Sinto que neste mês há mais recomeços do que em janeiro de cada ano. Nesse primeiro dia do ano, há promessas, muitas promessas que não passam disso mesmo, e nesse mesmo dia ou mês, morrem ou esmorecem com o frio dos dias invernosos.
Em setembro…
Recomeça a estação do outono e as folhas até aqui verdes, vestem-se de tons alaranjados, amarelos, castanhos, numa mistura que deixa um cheiro adocicado no ar, um aroma a castanhas e nozes, figos e peros.
Recomeça um pôr-do-sol mágico, diferente de todos os outros. O sol adormece com um brilho intensamente dourado e mais forte, dando uma magia especial à sua despedida no fim de cada dia. Cada dia que vai ficando mais curto e cada noite que recomeça a ser mais longa.
Recomeça a vindima. As videiras voltaram a dar fruto. As uvas amadureceram e o vinho está por fazer. As unhas ficam roxas mesmo sem verniz. Voltamos a correr para segurar nos cestos ou ter a hipótese de pegar no podão, como os adultos, e apanhar os cachos mais bonitos. Saltar para dentro do lagar em dias em que os mais velhos estão com boa disposição e deixam as crianças participarem em todas as fases desta festa que se repete em cada fim do verão. Com sorte até provamos o mosto.
Recomeça a escola. A azáfama nas livrarias e nas papelarias. As correrias dos pais. A ansiedade dos estudantes. O cheiro de livros novos que muitas vezes só são adorados nesse início de mês quando, com o carinho de tocar algo novo, os forram com o plástico autocolante prometendo mantê-los sempre novos e apresentáveis, promessa essa, que não dura até junho. A novidade quase se esgota ainda antes daquele dia em que se reencontram com os velhos colegas e amigos, e que se encontram com novos colegas e possíveis novas amizades.
Recomeça o trânsito maluco e completamente caótico. É difícil. Sim, muito difícil acordar aqueles que estiveram uns meses a dormir até ser horas de almoçar e agora têm de sair de casa antes do sol acordar. E os pais querem mais um beijinho enquanto os enchem com mais um longo discurso de palavras repetidas mas nem sempre ouvidas, para se portarem bem. O carro atrás já apita, e o filho ou filha já corre escadas acima atento ao que os colegas dirão do seu estilo neste primeiro dia e completamente esquecidos das anteriores recomendações.
Recomeçam horários, calendários, testes, atividades extras, planeamentos e tentativas de que tudo se conjugue e não haja tempos mortos para as crianças. Aquelas crianças que precisam todos os dias desses tempos mortos e se os tivessem, seriam os mais vivos e intensos dos seus dias agora ocupados com um horário tão sobcarregado, como se fossem gestores de uma multinacional.
E é neste recomeço que também eu recomecei a recordar esse tempo. Esse tempo em que era criança e não era adulta. Em que era filha e não era mãe. Em que era despreocupada e não tinha um horário tão completo. Em que o tempo morto, eram brincadeiras e gargalhadas, jogar ao lenço ou ao lá vai obra, às escondidas ou à cabra cega e era tão simplesmente feliz.
Este recomeço levou-me para o Caminho de São Roque…
Sim, tudo recomeçava também em setembro. Mas cada momento tinha o seu tempo, era vivido e sentido, não estava a correr para o momento seguinte esquecendo de viver o atual. Tínhamos livros para forrar, mas eram os livros já trocadas em plenas tardes de verão, entre os vizinhos ou irmãos. Não eram novos, mas eram tratados como importantes preciosidades. Tão importantes que a promessa de os manter em condições, para o próximo irmão ou vizinho, era cumprida até junho.
Livros que traziam marcas que perduram no tempo. Recordo o Cativar de Português, onde o meu vizinho tinha deixado escrito um nome. Um nome de rapariga: Estela. Sorrio carinhosamente a essa recordação. Hoje eles são um casal. E o amor recomeça em todos os setembros, quando preparam o recomeço do ano letivo para os seus filhos.
Nessa altura não saia de casa a correr. O pai não estava na estrada a apitar para nos despacharmos. Ele já tinha saído muito antes, a pé, para o seu trabalho.
E eu atravessava a rua para entrar na escola quase em frente. Já antes tinha tido os meus tempos mortos e tinha feito as lidas da casa pelas quais estava incumbida, ou tinha ido à cidade com a mãe para alguma consulta na caixa.
Dava tempo. Não corríamos. Até subia de volta a São Roque, na mesma camionete que a Srª Professora e ao sairmos na nossa paragem, a mãe avisava que eu ia almoçar e daí a pouco já estaria na sala de aula. E depois, no intervalo, podia subir à ameixieira.
Setembro recomeçou. Com sonhos. Com recordações. Com nostalgia. E com a pressa de quem hoje é também mãe e tem de correr o mês todo. E tem de recomeçar todas as manhãs.
O cheiro do recomeço sente-se no ar. Não sentes?