Paulo Ladeira
Paulo Ladeira
Com a chegada do verão, na Fajã da Ovelha, parte dos terrenos agrícolas enchem-se de dourado, proveniente do amadurecimento das searas e ervas, que crescem espontaneamente ou fruto de cultivo.
Nos terrenos agrícolas que compõem, na atualidade, a freguesia da Fajã da Ovelha, a maioria situada entre os 300 e os 700 metros de altitude, ainda é possível observar uma das culturas mais ancestrais e mais importantes para a subsistência humana. Referimo-nos aos cereais: o centeio, a aveia e, sobretudo, o trigo.
Começamos por alertar que esta atividade, com grande tradição na freguesia, tem caído a pique nos últimos anos, sendo uma das principais causas a pouca atratividade financeira. A venda do restolho do trigo para cobrir as casas típicas de Santana, que em parte vai da Fajã da Ovelha, é mais rentável que o rendimento do cereal produzido. Na atualidade consegue-se comprar, num supermercado, um quilograma de farinha a cerca de 40 cêntimos. Na Fajã da Ovelha e freguesias arredores, a debulha do trigo custa atualmente 12 cêntimos ao quilograma. Já a moagem no moinho ronda os 7 cêntimos (no Porto Moniz) ou em alguns moinhos é pago através da retirada de uma percentagem de cereal. Claro que não é rentável para o moleiro, nem para quem debulha e muito menos para o agricultor. Quanto ao valor comercial do trigo é adquirido ao agricultor a cerca de 50 cêntimos ao quilograma.
Para que este património imaterial e material associado diretamente ou indiretamente à cultura dos cereais, desde a sementeira, a ceifa, a debulha, a moagem e a transformação, tudo presente de modo natural no meio, não se extinga nos próximos anos será necessário pensar-se em estratégias urgentes para manter viva esta cultura tradicional. Em modo de sugestão, porque não existir um apoio financeiro à cultura dos cereais (trigo, centeio e cevada), como acontece com outras culturas, existentes em cotas inferiores, como a cana-de-açúcar, a vinha e a bananeira? Poderia ser um apoio direto por cada quilograma de cereal produzido e depois transformado em produtos regionais (pão tradicional, bolo-de-mel, broas, bolo do caco…) ou talvez também incrementar um apoio financeiro à debulha e à moagem, aliviando o agricultor destes encargos ou ainda passar por uma certificação de produtos regionais com farinha regional. Assim, poderá existir um maior incentivo aos agricultores destas localidades, cada vez mais desertificadas, contribuindo para uma maior área cultivada, para o não desaparecimento da cultura dos cereais, pela permanência destes contrastes de cor e biodiversidades na paisagem, tão apreciados pelos residentes e também pelos visitantes.
O trigo é uma cultura que nos acompanha desde o povoamento, ou seja, tem uma tradição de seis séculos. Desde a fixação dos portugueses no arquipélago da Madeira que a cultura dos cereais foi introduzida, sendo abundante a produção de trigo ao ponto de ser exportada para o Continente. Com o aumento populacional, o incremento de outras culturas mais rentáveis como a cana-de-açúcar, a vinha e a banana (mais recentemente) e a diminuição da produtividade, a Madeira depressa passou de exportadora a importadora, com consequências da carência no abastecimento de cereais.
O trigo, a par do vinho, era um dos produtos mais importantes, que podiam ser colhidos e armazenados e serem consumidos ao longo do ano. No mundo cristão são dos mais importantes, associados aos rituais religiosos. O trigo, objeto deste texto, foi empregue desde cedo no pagamento de côngruas aos padres, estando relacionada a quantidade consoante a dimensão da paróquia. Uma carta de D. João III, de 11 de abril de 1553, mandava acrescentar um moio de trigo ao pagamento do vigário da Fajã da Ovelha. Um alvará de Filipe I, de 22 de agosto de 1589, acrescentava 30 alqueires de trigo no respetivo pagamento. O alvará de D. Pedro II, de 3 de janeiro de 1687, fixava um moio e meio de trigo no pagamento ao vigário da Fajã da Ovelha.
A maioria dos terrenos da freguesia da Fajã da Ovelha não é propício às culturas tradicionais mais rentáveis, como a cana-de-acúcar, a vinha e a bananeira, prevalecendo os cereais, os tubérculos, as hortaliças e a criação de gado. A ausência de culturas mais rentáveis refletiu-se, por exemplo, nos poucos proprietários abastados que aí se fixaram e nas poucas capelas edificadas. Refira-se que enquanto noutras freguesias situadas a uma cota mais inferior abundam as capelas, na Fajã da Ovelha, nos limites da atual freguesia, até meados do séc. XX só existia a capela de São Lourenço. Os proprietários das terras, por vezes residentes fora da freguesia, não deixavam de buscar os rendimentos/foros das suas propriedades. Por exemplo, o morgado António Spranger, casado com D. Maria de Melo, residentes no Arco da Calheta, recebiam anualmente, no séc. XVIII, o foro de 27 alqueires de trigo proveniente dos “Prazeres, Maloeira e Fajã da Ovelha”.
Os frades do convento de São Bernardino, em Câmara de Lobos, deslocavam-se até à Fajã da Ovelha e Ponta do Pargo em peditório de produtos incluindo o trigo. Aí recolhiam, por exemplo, em finais do séc. XVIII e inícios do séc. XIX uma média anual de 155 alqueires de trigo.
Mais recentemente, era habitual o pagamento com trigo, da “bula” ou a “desobriga”, quando os cristãos comiam carne nos dias de jejum da Semana Santa. Ofertava-se trigo para as hóstias e ofertava-se trigo no dia de Todos os Santos para ter parte na intenção da missa dos Fiéis Defuntos (2 de novembro). Também, até há pouco tempo, era comum a recolha da esmola de trigo pelas casas aquando das visitas do Espírito Santo, destinadas às festas do Espírito Santo e do Santíssimo Sacramento. Para a festa do Espírito Santo o trigo era levado ao moinho e com a farinha obtinha-se o pão dado aos fiéis no dia da festa. Atualmente a esmola é dada em dinheiro e o pão é adquirido em padarias. O trigo, entre outros produtos agrícolas, também era ofertado nas tradicionais romagens de Natal.
O recebimento de côngruas, foros, pagamentos e esmolas em géneros, incluindo o trigo, era uma garantia no recebimento de um produto de primeira necessidade, sobretudo nos anos de maior escassez, como ocorreu em meados do séc. XIX, em períodos de grande seca e fome.
Segundo alguns estudos, sabemos que entre 1853 e 1857, ou seja, em apenas 4 anos, a produção cerealífera em toda a ilha da Madeira subiu bastante, a de trigo 54%, a de milho 504%, a de centeio 35% e a de cevada 76%. O concelho da Calheta foi terra de produção de muito cereal, sendo que a produção na década de 40 do séc. XIX rondava os 1186 moios de trigo e 211 de outros cereais, devendo as localidades das zonas altas, onde se inclui a Fajã da Ovelha, terem contribuído em muito para esta estatística. Em 1955, o concelho da Calheta produzia 900 toneladas, sendo o concelho que mais contribuía para as 4500 toneladas da produção total da Madeira, mas que ficavam muito aquém do necessário para o abastecimento do arquipélago.
Com o aumento populacional até meados do séc. XIX a área de cultivo de cereais aumentou. Não sendo possível praticar uma cultura de regadio em todos os terrenos, pela insuficiência de água ou pela impossibilidade da mesma chegar até eles e, por vezes, numa sábia estratégia de rotatividade de culturas, ficam os campos num ano com culturas de regadio e no ano seguinte são alternadas com o cultivo de cereais, evitando o esgotamento dos terrenos e a proliferação de ervas daninhas.
Atualmente a produção de cereais é residual na Madeira, verificando-se ainda algumas manchas douradas na Fajã da Ovelha, sobretudo nos sítios das zonas altas como a Lombada dos Cedros, a Raposeira e a Maloeira, sendo muito provavelmente estas zonas as de maior produção na Madeira.
Outrora prevaleciam a aveia, o centeio e a cevada algumas variedades de trigo, como o “branco”, o “preto”, o “canouco”, o “anafil”, o “russo”, o de “barbela”, etc., sendo a opção feita consoante as condições férteis do terreno, o fim a que se destinava o produto final, ou seja, se se desejava grãos para a obtenção de farinha ou palha/restolho alto para a cobertura de habitações e palheiros ou ainda uma palha macia para o enchimento de colchões.
O trigo é semeado em janeiro ou fevereiro, consoante as condições climatéricas, em regos ou a “granel” (ausência de regos), com recurso à enxada, arado (até a década de 70/80 do séc. XX) ou moto-cultivadora (atualmente). Outras das fases mais importantes da cultura dos cereais são a ceifa manual, com recurso à foice, e a debulha. A debulha era feita outrora em eiras com recurso aos trilhos e vacas, sendo mecanizada no séc. XIX por debulhadoras e aventejadouras com recurso à força humana, sendo o movimento das debulhadoras substituído pela força motriz a combustível. Na atualidade existem máquinas que fazem o processo de debulha e ventejar, com maior automatização. Por fim, os grãos são levados ao moinho, subsistindo em laboração um exemplar no sítio da Raposeira, a funcionar a energia elétrica, embora mantenha os mecanismos de funcionamento a água. Obtendo-se a farinha e o rolão dá-se os fins pretendidos aos mesmos, a maioria para confeção de pão. Quanto ao farelo é destinado à alimentação dos animais domésticos.
Na freguesia da Fajã da Ovelha ainda prolifera, de modo vivo, o património relacionado com a cultura e transformação dos cereais, com grande relevo para o modo de fazer, as caixas de castanho ou vinhático para a guarda dos grãos ao longo do ano e os fornos caseiros, ainda abundantes nas habitações da freguesia e outrora com muita utilização, que urge preservar.