Cátia Vieira Pestana
Cátia Vieira Pestana
Naquela tarde de sexta-feira, nos primeiros dias em que todos fomos tocados pela pandemia, o ambiente na Junta de Freguesia era certamente diferente do normal. Faltava o entra e sai constante dos fregueses.
O frenesim foi interrompido pelo toque do telefone. Do outro lado, uma voz trémula e envergonhada pedia ajuda para enfrentar um fim–de-semana de confinamento… deixou de ter acesso à refeição quente que usufruía diariamente, tinha os armários vazios e sobrava-lhe 60 cêntimos para matar a fome. Naquela hora, soou o alarme. A equipa da Junta tinha uma situação que necessitava de ser resolvida na hora. Nos dias seguintes as situações avolumaram-se e a situação de emergência social cresceu muito para além do que poderíamos imaginar. Duarte Caldeira Ferreira, Presidente da Junta de São Martinho, já em março, alertava para isso.
Foi tudo de repente, e sem aviso prévio, que o impensável aconteceu. Tudo à nossa volta fechou e fomos enviados para confinamento. As ruas esvaziaram-se de gente, as escolas, os lares, as associações, as instituições, os organismos públicos, o comércio, tudo se encheu de vazio e de silêncio em nome de um bem maior: conter e controlar a Pandemia que varria o Mundo a uma velocidade estonteante. Todos os dias pareciam uma eterna Sexta-feira Santa, como aquelas dos tempos dos nossos avós, em que nem o som dos passarinhos ouvíamos. Não havia carros, não havia barulho, não havia gente… o tempo parou.
Era preciso deixar trabalhar quem tinha ficado no terreno para auxiliar. Quem não parou foram as Juntas de Freguesia, mais próximas da população, mais presentes, mais cientes dos seus e das suas necessidades. Foi o caso da Junta de Freguesia de São Martinho que, desde a primeira hora, percebeu que este confinamento forçado traria inevitavelmente consequências para os mais vulneráveis, para os que pouco têm. Logo foi preciso pensar porque dificuldades estariam a passar.
Para quem conhece os seus e a sua freguesia tão bem, foi fácil entender que havia pessoas em casa a precisar de medicação, de compras, de alguém que lhes dissesse que estava ali para ajudar no que fosse possível e para garantir que não arriscariam a sua saúde e bem-estar com saídas desnecessárias e desprotegidas. Em São Martinho, a Junta de Freguesia colocou em acção o “Fique em Casa”, uma linha de apoio para tratar da aquisição e entrega desses bens de extrema necessidade e, dessa forma, manter os mais frágeis em casa, seguros.
Mas foi mais longe. Quando todos fecharam portas, inclusive as associações que tinham como função prover a alimentação diária de alguns dos idosos e que dispunham de meios e fundos para isso, a Junta de Freguesia continuou. Contactou idosos que simplesmente não tinham o que comer, porque o Centro de Dia fechou e era lá que comiam. Tantas pessoas passavam tanta necessidade e nem sabiam… gerou-se parcerias com entidades privadas e foram fornecidas 1.724 refeições, foram acautelados bens alimentares que foram adquiridos junto do comércio local por forma a também ajudar as empresas. Deu as mãos à Cáritas e juntos foram a casa das pessoas. Associou-se à Câmara Municipal do Funchal na distribuição de livros que davam um mundo a quem estava confinado.
Quando as escolas começaram a enviar trabalhos para os alunos em ensino à distância, também a Junta de Freguesia estava lá, disponível para fornecer impressões. Foram quase 13.000 cópias disponibilizadas. E quando os universitários necessitaram de estar online para realizar exames, também a Junta estava lá, para fornecer equipamento informático, uma sala e internet para o efeito.
As Juntas de Freguesia têm esta função de estar perto, têm esta função de antecipar as necessidades dos seus fregueses e de atuar, fazer, proporcionar, criar condições. Quem parece não saber disso é o Governo Regional, que na hora de canalizar verbas e apoios tão necessários às populações o faz via outras instituições que não o Poder Local. Fá-lo através das Casas do Povo, criadas com uma génese lúdica e formativa .
Ao fim de tudo isto, nós, cidadãos, munícipes, fregueses, seremos chamados a votar e aí diremos de nossa justiça, se a Junta de Freguesia esteve com os nossos. Mas, a essas instituições, cujas direções não são eleitas, cujo trabalho não é votado nem escrutinado entregamos os nossos dinheiros, que muito nos custarão a pagar, para fazer chegar a quem precisa. Isto faz-me lembrar uma história que há tempos ouvi sobre uma Casa do Povo, a quem o Governo chamou para entregar produtos regionais, comprados aos nossos produtores que estavam com dificuldades de escoamento e que, de forma simpática e ingénua a Casa do Povo lá contactou os seus utentes, muitos deles sem qualquer carência, mas que frequentam a Casa do Povo porque gostam da música e da companhia, para saber quem queria e a muito custo lá conseguiu despachar esses alimentos, deixando para traz quem na freguesia tanto necessitava, simplesmente porque a sua visão da freguesia é curta e fragmentada, como aliás seria de esperar. Agora pergunto, conhecendo o trabalho e a proximidade da Junta de Freguesia, não saberia ela dar melhor uso a esses bens? Não teria feito chegar a mais gente e feito a diferença?
Naquela sexta-feira, a tal do início disto tudo, alguém fez com que aqueles 60 cêntimos chegassem para encher a dispensa daquela frágil habitante de São Martinho. E ainda sobrou troco, mais que suficiente para encher um punhado de corações que, naquela junta, todos os dias batem por uma freguesia.