Quando era criança tinha uma certa inveja dos miúdos que brincavam livres entre os barcos do varadouro e na mergulhança no cais em busca da moeda atirada ao mar pelo turista. Aos olhos inocentes da infância a miséria transfigurava-se numa espécie de Terra do Nunca, cheia de Meninos Perdidos felizes, que não tinham que ir à escola e à catequese.
Nas palavras do Dr Ricardo Jorge, no documentário “Câmara de Lobos, Enseada Amena de Pescadores sem Pão” de 1974, Câmara de Lobos não era um problema, Câmara de Lobos era uma tragédia. Vi Câmara de Lobos crescer, muitos dos Meninos Perdidos escaparam à Terra do Nunca, a miséria esbateu-se e o vaticínio da tragédia não se concretizou.
Ser Xavelha, nos anos 90, numa escola de 2º e 3º ciclo do Funchal, era ao mesmo tempo motivo de desdém e de um certo respeito temeroso. No décimo ano fui para a Escola Francisco Franco, a minha turma era constituída por colegas de toda a parte da ilha, do Estreito de Câmara de Lobos, de Santana, Santa Cruz, Porto Moniz e Funchal. Continuei a ser o Xavelha da turma, epiteto ostentado com orgulho. Mas nessa altura havia ainda quem escondesse as suas origens Câmara-lobenses, para ter acesso a um emprego. O estigma esbatia-se mas persistia.
Saí da Madeira em 2000 rumo ao Porto, para continuar os meus estudos. Longe da ilha dá-se um fenómeno interessante, a distância congrega os jovens ilhéus. Deixam de existir Xavelhas, Vilhões, Lanchas, Machiqueiros e passam a existir apenas Madeirenses. A cada regresso encontrava uma ilha diferente, as distâncias encurtavam-se, os estigmas esbatiam-se.
No início de 2006 regresso definitivamente à ilha. As ilhas são faróis no meio do deserto azul, ponto de retorno inevitável, ao qual o ilhéu não resiste. Mesmo quando esse retorno é eternamente adiado.
Devido à fronteira líquida que nos rodeia, a mudança não dá lugar a incertezas, conseguimos definir o momento exato em que passamos para o outro lado do espelho. A fronteira não é uma linha imaginária, está ali, em frente à janela. Uns dias mais azul ou, noutros dias como o de hoje, pontuada por cristas brancas. A fronteira da ilha não é apenas uma passagem entre um país e outro, é porta para o mundo inteiro.
E de um dia para o outro, por causa de um inimigo invisível, essa fronteira fechou-se. Cidadãos de todo o mundo regressaram aos seus países, a ilha esvaziou-se, o silêncio tomou conta das ruas e o “estrangeiro”, por momentos, passou a ser olhado com desconfiança e alvo de atitudes xenófobas por parte de alguns.
O medo levou algumas pessoas a ter comportamentos irracionais e a esquecerem-se rapidamente que a nossa ilha depende em grande parte dos “estranhos” que nos visitam. Por momentos senti vergonha por mim, por eles.
E então outra fronteira surgiu, que delimitou a freguesia que me viu crescer, e fez ressurgir, na mente de alguns do lado de lá do cerco, estigmas há muito ultrapassados.
Durante 15 dias o silêncio imperou pelas ruas da cidade contrastando com o clamor irracional de quem acendia archotes e preparava forquilhas virtuais, para atingir o Xavelha, o bode expiatório para o medo que sentiam.
O Xavelha não esquece, mas não guarda rancor. A capa do estigma usa-a quem quer e há muito que a rejeitamos. Câmara de Lobos não é Terra do Nunca, é País das Maravilhas.
Magno Bettencourt, Sociólogo