Sónia Gonçalves
Sónia Gonçalves
Em Setembro de 1990, os meus pais trocaram a agitada capital venezuelana pelo sossego da sua terra natal, o Jardim da Serra, um sítio recôndito mas com paisagens singulares que, na Primavera, oferece cenários soberbos, com um verde omisso sobre um manto branco de cerejeiras em flor. Partiram com uma filha apenas mas, no regresso, trouxeram cinco, novos costumes e uma mala cheia de histórias. Na minha memória, ainda antes de regressar “de vez”, tinha muitas das aventuras com os primos: a apanha da cereja, da ameixa, da uva, da maçã, da pera, da nectarina… A maçã na Venezuela era um fruto escasso e caro. Lembro-me de contar na escola que em Portugal havia tanta abundância que estas caíam ao chão a apodrecer e muitas vezes ninguém as apanhava. Os meus amiguinhos, na sua inocência de primária, sonhavam um dia poder visitar a Europa e poder comer todas as maçãs que lhes apetecesse…
Mas eu própria me iludi com uma vida europeia de Verão e um ambiente de férias… No primeiro Inverno, percebi que aquele sonho se ia desfazendo com uma realidade um pouco mais dura, embora também agradável. Era preciso adaptar-se. Quando as temperaturas atingiam níveis tão baixos que provocavam a precipitação de granizo, tinha de usar luvas porque nem conseguia sentir os dedos. Rapidamente entendi o porquê de muitas pessoas, sobretudo os idosos, cheirarem a fumo. Não tardei também a me aconchegar junto a uma lareira. A dos meus avós maternos, que passavam os fins de tarde ao pé da ‘cozinha a lenha’. Ainda cheguei a fazer trabalhos de casa junto a eles, no calor do lar (na altura não percebia quanto amor brotava daquele lar…). Mesmo sem TPC, talvez porque a TV só transmitia um único canal, a contrastar com o zapping a 18 canais a que estava habituada, algumas vezes aproximava-me demais da fogueira e a minha avó advertia-me que “fazia mal” estar tão perto. Muitas vezes, tinha a sorte de encontrar primos na casa dos avós e, rapidamente, ao brincar aos “apanhados” ou às “quentinhas”, esquecia o frio.
É que, da noite para o dia, tinha deixado as autoestradas e as ruas movimentadas cheias de comércio do centro de Caracas para passar a viver numa zona completamente diferente. Os acessos eram muito precários. Algumas estradas estavam por alcatroar e, para chegar ao topo, era preciso subir mais de 800 metros entre curvas e contracurvas que pareciam infindáveis. Ainda não havia a Via Rápida, quanto mais uma Via Expresso até ao Estreito de Câmara de Lobos ou até ao Jardim da Serra (ao tempo que já se fala deste acesso!). Ir ao Funchal de transportes públicos correspondia a andar uma hora de autocarro e a paisagem, inicialmente interessante, acabava por se tornar enfadonha. A Cooperativa era o único supermercado que havia naquela localidade e, nas imediações, as mercearias vendiam bens essenciais. Algumas ainda hoje funcionam, resistindo aos tempos modernos.
Nesta altura, para além de parcos acessos, não havia caixa de Multibanco, lojas, cabeleireiro, cafés com esplanadas… Mas a quantidade de autocarros e as muitas viagens que estes faziam comprovavam que vivia muita gente neste ‘jardim’. Havia mais escolas abertas do que as que funcionam Hoje e o pão que a Padaria Fátima produzia, a única que existia na altura, era posto à venda nas mercearias e cafés por vários carros de distribuição. A crise, associada à falta de emprego, tem levado algumas pessoas a emigrarem, pelo que talvez atualmente a densidade populacional seja menor.
O povo do Jardim da Serra sempre foi muito ativo e reivindicador. Em julho de 1996, um grupo de cidadãos conseguiu concretizar um sonho: ver aquela localidade ser considerada freguesia. Pouco tempo antes, a via rápida já permitia um acesso mais célere e, aos poucos, os moradores iam conseguindo algumas conquistas.
Assim, apesar de ser a freguesia mais jovem da Região Autónoma da Madeira, esta tem-se destacado das mais variadas formas. Se quando entrei no ensino superior éramos muito poucos os que tínhamos optado por prosseguir os estudos, nos dias de Hoje são muitos os jovens com formação superior. Orgulhosamente, encontramos pessoas naturais do Jardim da Serra nas mais diversas profissões.
As pessoas naturais desta freguesia têm conseguido dar ênfase à sua terra através de diversas formas de promoção. Vários desportistas da Associação Cultural e Desportiva do Jardim da Serra têm levado o nome da freguesia além-fronteiras e em diversas modalidades, sobretudo no atletismo, mas também noutras como rogaining, orientação, sky running e trail running.
Na vertente cultural, o cantor João Quintino tem-se destacado com atuações junto da diáspora e até uma filha da terra, Betty Rodrigues, foi eleita Miss Madeira, continuando a estar ligada ao mundo da moda.
Também motivo de orgulho é o Hotel Quinta da Serra, que tem obtido diversas certificações ambientais pela produção em modo biológico.
Para mim, o Jardim da Serra, atualmente um local com melhores acessos e servido dos principais bens e serviços considerados minimamente essenciais para uma freguesia, não é apenas a terra dos meus pais ou o local onde cresci após ter vindo da Venezuela. É um sítio reconfortante que, apesar do frio, aquece sempre o meu coração, convertendo-se no meu porto seguro, onde encontro a minha família e amigos.