Este é um resumo da reportagem realizada na semana que agora termina, com fotografias de Rui Silva da Aspress
Boa Ventura (ou Boaventura, na verdade ninguém se preocupa como se escreve) é uma freguesia, como quase todas as da costa norte da Madeira com verde a transbordar do mar à serra, na verdade deveria ser o contrário, pois a ligação à terra, à agricultura, sempre foi mais forte que ao salgado das águas que banham as escarpas verdejantes que descem até ao calhau. Uma freguesia pacata de gente humilde, trabalhadora, mas que tem sempre uma palavra a dizer quando a conversa flui.
Citando os sites da autarquia e da Junta, “de acordo com o ‘Elucidário Madeirense’, a origem do topónimo é desconhecida, sendo necessário, em primeiro lugar, averiguar a sua verdadeira grafia, uma vez que o nome aparece escrito de duas formas: Boaventura e Boa Ventura. Presume-se que a primeira forma seja a mais antiga, comum e usual, ignorando-se, contudo, a razão da preferência por qualquer uma delas. O arquivo paroquial desta freguesia não contém referências à origem do nome”. E assim continuará por gerações ao gosto de cada um.
É mesmo uma boa sorte, boa fortuna e até bom destino, dependendo de como quiser interpretar ou sentir. Mas, para quem vive naqueles 26,20 km², a maior parte inacessível ou inabitável, dado o intenso verdejante da floresta Laurissilva e das outras espécies que vão, também, tomando conta do território, Boa Ventura é um cantinho do céu, zona de passagem esporádica de turistas de carro ou a pé pelas veredas, mas ainda pouco tomada pelas enchentes dos principais pontos turísticos da ilha.
Aqui, efectivamente, o que sempre mais se sentiu foi a distância para o centro. Seja das zonas mais distantes lá no alto da montanha, quase a ‘beijar’ o Curral das Freiras, como o Lombo do Urzal ou a Achada da Madeira, passando pela Achada Grande ou pela Falca até ao centro da freguesia, trajecto que se faz em 9 minutos ao longo de 5,2 km, seja dali ao centro do concelho de São Vicente, ao qual distam 8,3 km e que hoje faz-se em 10 minutos de carro, pelos túneis. A ligação a Santana faz-se em cerca de 25 minutos, por vezes, por um longo carrossel da ER101 ao longo de 17,5 km. Até ao Funchal, são mais de 40 minutos e com sorte, pois a capital fica a 41km de distância.
Recuperamos texto na mesma página oficial da Câmara Municipal. “Boaventura era conhecida pelos seus difíceis acessos, especialmente a ligação precária ao Funchal pelas Torrinhas. Sabe-se que era imposto a cada cabeça de casal o trabalho de cinco dias em obras de benefício público, o que mantinha os caminhos transitáveis. No entanto, com a abolição deste tributo, os principais caminhos ficaram interrompidos em 1863 devido às frequentes quebradas na zona”, contam. Essa é uma realidade desde os primórdios da povoação destes montes e vales de que Boa Ventura é apenas mais um exemplo.
Fartos de promessas, ainda que não se queixem da pacatez da localidade, cada um metido na sua vida, os habitantes variam entre aqueles que vão resistindo, a maioria já de idade avançada para aventuras fora da ilha e os muitos filhos da terra que foram e regressam a espaços no tempo. Na Boa Ventura, como se escreve na heráldica da junta de freguesia, vivem cerca de mil pessoas. Nos últimos Censos (2011) eram precisamente 1.035 os residentes, com uma densidade populacional de 40,9 hab./km², a sexta mais baixa Madeira. Em 1950 teve quase de 3.590 habitantes, hoje são 3,5 vezes menos (-71,2%), a grande maioria idosos (idade média 50,93 anos, a sexta mais alta). Em 2021, 90 habitantes tinham entre 0 e 14 anos, curiosamente ocupando a 42.ª posição com população mais jovem.
Mas são, dizem os cadernos eleitorais, mais votantes do que residentes, algo que é comum na Região. Ainda assim, o povo vai às urnas e vota sempre, bem mais fiel às Autárquicas do que às Regionais, Nacionais, Presidenciais e Europeias. Nas Autárquicas de 2021 para eleger a Assembleia de Freguesia Os eleitores sabem que os políticos gostam de promessas, que em campanha – mais uma que está à porta – andam aos abraços, beijinhos, sorrisos e palmadas nas costas, mas depois até parecem estranhos.
José Perestrelo é, basicamente, um retrato fiel deste perfil. Esteve emigrado 22 anos, voltava de tempos em tempos para cuidar das suas coisas, das suas terras, da sua casa e palheiro, mas cansou-se da vida no estrangeiro, quase sempre em Jersey e voltou em 2021 para nunca mais sair da sua terra. Aos 63 anos, vive com a mulher e a sogra, e tem um filho que está emigrado. José já não se preocupa em dizer o que tem a dizer, aliás, lembra, “onde está a sede da junta já foi terreno meu e que vendi, a custo e muita negociação, primeiro com o governo e depois com a Câmara”, diz. “Não deu para ficar rico”.
Da conversa junto ao seu pedaço de terra passamos para o café, onde ofereceu um café e uma ‘água das pedras’. “Bom era cumprirem a promessa de completar a ligação ao Arco (de São Jorge)”, desabafa. Uma conversa a que se juntaram outros, mesmo em frente à Junta, ali se falou de tudo, da demora que levou a cumprir a ligação mais directa ao centro do Concelho, da “promessa desde há quase de 40 anos, na altura o Dr. Jardim veio cá inaugurar o campo de futebol e disse que bom era ter ‘furar’ até ao Curral”, atira um morador que não quis se identificar. Outro, na mesma situação, recorda andaram a falar durante anos da ligação a Ponta Delgada e ela foi feita. Portanto, pede paciência.
E é neste debate de ideias que se passam as manhãs e as tardes ali, mesmo no centro da freguesia que se estende montanha e vale acima e que hoje está mais perto porque as estradas, mesmo que a conta-gotas, vão encurtando distâncias.