Filipe Gonçalves
Filipe Gonçalves
Sempre tive orgulho de dizer que morava na Casa Caída.
Um sítio pacato, no Estreito de Câmara de Lobos, longe de tudo mas perto do sossego, calma e ar puro. As casas, construídas quase em banda, subiam a encosta que se perdia no céu.
Do meu quarto, partilhado com outros dois irmãos, acordava com uma vista isenta de IMI.
O mar estava ali mesmo, à nossa frente, e desde novo fiquei apaixonado pelo horizonte.
Aquele horizonte que em dias de sol marcava a linha que separava o céu do mar.
Aquele horizonte que me inspirou e que um dia eu prometera dobrar, longe de imaginar enfrentar qual cabo das tormentas, mas que muita luta me deu. Mas isso deixo para falar mais à frente!
Na escola, fazia questão de dizer que era da Casa Caída. Elogiava o mar da frente e as serras de trás e o quão distante ficava do centro do Estreito.
Gostava de me sentir o “piqueno” de “lá de cima da Casa Caída”.
Ainda me lembro do primeiro dia que ouvi, na minha RTP, que o governo ia abrir uma estrada.
Fiquei assustado – assumo. A Casa Caída não mais seria minha e dos meus vizinhos. O mundo ia descobrir a minha Casa Caída. Lá se ia a calma e o sossego.
E assim foi.
Num ápice, vieram as “contrapilhas”, os “trabalhadores da SOCUPUL”, a terra, a lama, a poeira. O betão e o alcatrão.
Quando ia a pé até ao Estreito deitar cartas no correio (sim, ainda sou do tempo em que se escrevia para as tias embarcadas) regressava pela estrada, em cenário apocalíptico, com valas gigantes que pareciam autênticos desfiladeiros. Fazia de trapezista em cima das “manilhas” e o truque era chegar a casa sem vestígios de poeira para a mamã na brigar.
Veio a inauguração.
A Casa Caída parou para ver passar o ‘Alberto João’ (só estava habituado a vê-lo na minha RTP, mais tarde passou a ser um dos muitos protagonistas das histórias que cheguei a contar neste DIÁRIO).
Carros pretos, em caravana, a apitar e a comunicação social. E à noite, apressei-me para ver o Jornal das 9, e lá estava o nome da minha Casa Caída, a ser dito na minha RTP.
Vieram os autocarros, o caminho alcatroado, as garagens e os carros estacionados na estrada.
Vi os jovens mais velhos irem para os estudos na (única) cidade existente até então – Funchal; quis fazer o mesmo. E fiz!
Vi outros tantos irem estudar para Lisboa; quis fazer o mesmo. E fiz!
Aí é que tudo mudou. Deixei para trás a minha Casa Caída para aterrar numa Lisboa imponente.
Passei o cabo das tormentas. Fui vítima de um assalto à mão armada, e pouco sobrou dos 22 contos de bolsa que tinha para sobreviver aquele terrível Abril que tardava em chegar ao fim, para recuperar o dinheiro roubado.
As agruras dos dias frios de inverno, de uma Lisboa tão minha como de toda a gente, contrastavam com as longas tardes de verão na minha Casa Caída. Vinha-me à memória eu sentado no terreiro a olhar a mamã a bordar na soleira da porta. Recordava-me dos dias em que mergulhava na coleção “Uma Aventura” a imaginar ser eu um dos protagonistas. E quando não lia, corrigia os livros do meu irmão mais novo e fazia observações, a caneta vermelha.
Fiz o curso.
Vivi e voltei aos estudos em Londres. Ah, a minha London city.
Suspiro.
Quando regressei de vez à Casa Caída tudo mudara. Tudo tinha mudado. Estávamos nos últimos dias de 2003.
As crianças com quem brincava na fonte, e perdia a conta das horas, tornaram-se mães e pais. Estranho.
A minha Casa Caída parecia-me estar mais distante e diferente. Pessoas com quem lidava desde sempre, como o meu tio José que quando trabalhamos juntos na ‘venda’ contou-me o episódio em que perdeu a perna no Ultramar, partiu sem se despedir. E como gostava tanto dele!
O sítio até parecia vingar-se de o ter abandonado. O divórcio era iminente.
Tive de me fazer à vida e abraçar a minha paixão: Jornalismo.
A Casa Caída passou a ser apenas dormitório. E todos os dias lá tinha de percorrer quilómetros e quilómetros até chegar à minha casa. Não tinha horas para chegar e muitas vezes, enquanto o sítio dormia, lá serpenteava eu com o meu carro, ainda com entrada de ar, até à minha RTP.
O progresso e a modernidade tomaram conta da Casa Caída.
Casas grandes, cada vez mais bonitas, convivem com o que resta da minha Casa Caída de antigamente.
Como me lembro da sombra provocada pela laranjeira do avô ou da ameixieira do vizinho que pendia para o nosso terraço.
2018 e a Casa Caída lá está. Diferente. Mas com muitas almas a garantirem a existência do sítio. Não sei até quando, até porque a Casa Caída de outrora hoje chama-se Levada da Saraiva. Pasme-se. Mas neste DIÁRIO que também já foi meu, sinto que presto homenagem a um sítio com um nome que esconde uma história trágica.
Aquela contada pelos antigos e que não encontrei fundamento histórico. Diziam que lá no alto do sítio havia um casal que terá construído uma casa. Resolveram casar, e no dia do enlace um forte vendaval abateu-se sobre a zona e terá derrubado a casa. A partir daí sempre que queriam referir-se a alguém do sítio diziam que moravam junto à Casa Caída. E assim ficou. Casa Caída. A minha Casa Caída e filha do Estreito de Câmara de Lobos.
Como sinto saudades da minha Casa Caída de antigamente. Mas hoje é onde encontro o sossego e a calma, com direto a pássaros a me cantarem os bons dias.