Cátia Vieira Pestana
Cátia Vieira Pestana
Vivi até aos meus 25 anos em São Martinho, no Pico do Funcho. Corri cada beco, cada vereda, nos infinitos verões da minha infância.
Brinquei na levada, quando a água vinha de giro, saltei à fogueira, fiz autênticos “crosses” pelo bananeiral, roubei araçás aos vizinhos e nunca consegui resistir à doçura do jaqué e da uva americana.
Apanhei uvas, fiz vinho, fugi a cada vez que se mataram porcos na vizinhança. Participei em movimentos juvenis da paróquia de Santa Rita, nos anos em que fui, com muito orgulho, Guia de Portugal.
E, durante esses longos 25 anos sonhei por mais progresso na minha freguesia, sonhei pelo fim de alguns becos que nos deixavam tão distantes da estrada, tão sós, tão desprotegidos, por vezes. Sonhei com uma freguesia mais dinâmica, menos rural, com melhores condições de habitação, com saneamento básico.
Sonhei que os senhores que governavam a freguesia, mais por herança e por hábito, do que por vocação ou empenho, um dia iam escutar os desejos e necessidades das pessoas, e um dia iam entrar no beco, mesmo encostado às suas lindas casas, e perceber que aí estavam pessoas por quem era imperioso olhar.
Em 2005, saí da freguesia, as voltas da vida levaram-me para o Caniço, as mesmas voltas que me trouxeram novamente a São Martinho passados alguns anos. E que Mudança!…
São Martinho tinha encetado um ciclo de mudança até então nunca visto para hoje ser uma freguesia onde apetece viver. Uma freguesia com várias realidades: uma extensão mais rural e outra extremamente urbana.
No Verão passado, tive oportunidade de regressar aos becos e veredas da minha infância e aí testemunhei que o futuro chegou: vi estradas que substituíram algumas veredas e criaram novas centralidades na freguesia; vi habitações recuperadas; vi famílias completamente agradecidas por finalmente, após mais de 20 anos, terem resolvido problemas com o abastecimento de água, só porque alguém se preocupou, só porque alguém visitou o seu beco, entrou em sua casa e perguntou o que é que era urgente fazer pela freguesia; vi famílias infinitamente gratas, porque finalmente, após mais de 20 anos, podiam trazer visitas a casa sem se preocuparem com o cheiro nauseabundo do esgoto (e como eu me lembrava das tardes de infância naquele beco que tresandava, sem que nada se fizesse por resolver, como se isso fosse natural); vi que o movimento associativo cresceu e que há associações a fazerem coisas fantásticas com as pessoas de São Martinho, como é o caso da Olho.Te que olhou nos olhos das pessoas do Bairro da Nazaré, despiu-as do preconceito e encheu-as de dignidade e orgulho pelo seu bairro, ou da ARCA da Ajuda que, noutro ponto da freguesia, faz relembrar as tradições das nossas gentes, entre tantas outras que foram trazendo dinamismo à freguesia.
Também vi pobreza, pessoas com algumas necessidades, mas vi que hoje, ou contrário de antes, há ajudas em vários aspectos (alimentação, medicação, orientação na procura de emprego, ajudas especiais para suprir os infortúnios que a vida vai trazendo).
Mas, neste meu périplo por São Martinho, foi com um aperto no peito que testemunhei a realidade das pessoas que habitam os Bairros da nossa freguesia, aí sim, a miséria é extrema e profunda, sobretudo a nível da dignidade.
Vi inúmeros casos de falta de habitação condigna, ali, onde as pessoas não deviam estar desprotegidas, ali onde há uma responsabilidade governamental, ali falta muita coisa, mas sobretudo falta a urgência e o respeito pelas pessoas. Vi pessoas a viverem em apartamentos cujo acesso é de longe pior do que o beco mais recôndito da freguesia.
Vi pessoas que têm vergonha das suas casas, que se sentem abandonadas e marginalizadas por um governo que as meteu em apartamentos sem chão, sem portas, sem luz nas áreas comuns e as esqueceu. Aí, a mudança ainda não se fez, para nossa tristeza! O futuro trará, sem dúvida, a dignidade que estas pessoas merecem!
Hoje, São Martinho é uma freguesia onde apetece viver! Desde o litoral, a cada dia mais aprazível para passeios e caminhadas até à parte mais rural de freguesia. Hoje, São Martinho prima pelas suas inúmeras atividades desportivas e culturais, pelas suas escolas, pelas suas associações, pelas suas gentes. São Martinho fez-se grande, do tamanho do seu território, e a cada dia cresce em dinamismo, em cultura, em lazer.
Hoje, São Martinho é, sem dúvida, um lugar onde vale a pena voltar a viver! Que bom que a volta da vida me trouxe de volta a casa!