Susana Fernandes
Susana Fernandes
Era no degrau cimeiro das escadas do terraço que me sentava ao fim da tarde.
O sol despedia-se sob as encostas de São Martinho, que o aconchegava, para no dia seguinte acordar brilhante ali do outro lado, na zona de São Gonçalo.
Entre nós, o meu olhar ainda recaía no casario que inicia a subida para os montes de Santo António e ao virar a cara para o lado esquerdo, era o Monte que me devolvia o reflexo do luxuriante verde das suas colinas.
Nesse degrau do terraço, suspirava sonhos e planeava uma vida, inspirada por aquele mar azul que se agigantava na minha frente. Tinha entardeceres em que me perdia além da linha do horizonte e acreditava que tudo era possível.
Não regateava com as minhas aspirações.
Há distância de vinte e tal anos atrás, quando ali me sentava ao fim do dia, na nossa casa em São Roque, os sonhos eram crianças irrequietas que saltitavam na minha mente, enquanto desfrutava de toda a bela paisagem que a minha freguesia abraçava.
Uma moldura perfeita para um quadro de beleza, pincelado de diversas formas e cores que faziam São Roque brilhar. O seu encanto naturalmente se destacava emoldurado pela beleza das outras freguesias que o rodeavam.
Cedo nos despertava pela diversidade e múltiplas possibilidades oferecidas, pela envolvência com a natureza, com a cultura, desporto e socialização.
Não limitou a minha imaginação. A vontade de sonhar e ir além, saltar os degraus, descer as ruas que levavam ao centro do Funchal, a cidade que se estendia a seus pés e que encaminhava para o oceano que a cingia e que se abria em prometidas aventuras.
Que sortuda que fui ter nascido ali. Sim, numa das muitas casas que serpenteiam a freguesia de São Roque. Casas com jardins e flores, casas caiadas de branco ou pintadas de outras cores dando variedade e colorido a uma freguesia alegre, subindo pelos vales e tendo como manto o verde das suas serras.
Se subisse a ladeira a correr, em cinco minutos estava na Igreja. Uma Igreja quase sempre cheia de rostos conhecidos, uns sorridentes, outros, aqueles de algumas pessoas mais idosas, sisudos e compenetrados no terço que desfiavam por entre os dedos enquanto sibilavam monocordicamente as ave-marias que não permitiam interrupções. A participação nos actos litúrgicos eram algo natural para nós. A mãe não permitia outra coisa!
O convívio prolongava-se após a catequese e missa, em conversas e gargalhadas no Miradouro. Sim aquele belo Miradouro, que no fim do ano continua a se encher de turistas e locais, tal é a abrangência e beleza do cenário que se vê dali. O cafezinho era tomado no restaurante ali mesmo ao lado da Igreja e alimentava-se pela amena cavaqueira entre jovens e adultos até chegar a hora de regressar a casa para o almoço domingueiro em família.
Os sons saídos da telefonia colocada estrategicamente em cima do armário, não conseguiam abafar a alegria e azáfama numa mesa que não sendo de realeza, era de real felicidade e partilha pelos 11 irmãos e os pais ali sentados.
Tem vinte e um anos que de lá saí. Nunca tinha feito estas contas, nunca precisei, porque na verdade a minha alma continua lá. Sempre pertenceu a São Roque, a freguesia que me viu nascer, crescer como criança feliz e me tornar mulher.
Não são os números, estatísticas ou descrições pormenorizadas de fatos, que marcam o pulsar deste lugar. São as recordações, emoções, cheiros, cores, momentos, experiências, sons que me retornam ao berço, que me fazem reviver o que guardo em mim. Praticamente metade da minha vida aconteceu em São Roque e todas as experiências lá vividas fazem o que hoje sou, mesmo não estando lá.
Grandiosas noites de música, teatro, animação, passámos no Recreio Musical União da Mocidade. O “Grupo” era mesmo ali abaixo da nossa casa onde os meus irmãos (os rapazes) podiam ir para lá durante a semana jogar às cartas, damas, outros jogos e conviver.
Ali juntaram-se gerações de artistas. Nasceram ali grandes artistas!
As crianças encolhiam-se quietas e mudas por baixo da folha de zinco que cobria a sala de espectáculos, porque: “Silêncio, vamos cantar o fado.” Sinto o mesmo arrepio que me percorria já na altura. Depois, ou antes, eram os momentos hilariantes com as peças de teatro, as cançonetas e… pois, até eu cheguei a declamar o “Cântico Negro” de José Régio, acompanhada pelo som da viola que o maestro João Eurico Martins tocava. Fez-me sentir grandiosa naquele pequeno palco.
Que saudades! Saudades de lá ouvir a tuna de bandolins, que de um grupo amador que já fazia soar mágicos sons, se transformou num grupo que hoje pisa palcos internacionais, tendo actuado inclusive para a Rainha de Inglaterra. Ali continuam a nascer bravos músicos da freguesia.
No degrau cimeiro das escadas do terraço, olhava e sonhava…
Tinha tudo para sorrir e sonhar.
E tinha também o ringue do Clube Desportivo de São Roque. Antes dos jogos de hóquei em patins ou futsal, no intervalo ou no fim, éramos brindados com aquelas bailarinas que maravilhosamente nos presenteavam com requinte, leveza e formosura, em danças perfeitas que nos transportavam para um mundo mágico.
E aconteceu o ténis de mesa e campeões nascidos em São Roque. Rapazes da freguesia! E continua a haver o ténis de mesa, a pesca desportiva, com mais campeões. A natação ou o karaté que fazem vibrar a população, desde os mais novos que os praticam, aos mais velhos que os acompanham, aplaudem e se orgulham. E o ritmo faz a população vibrar e sonhar, trabalhar e concretizar.
E os sonhos continuam. Sonhos que são sonhados mesmo sem ser no degrau cimeiro das minhas escadas, mas noutros degraus de outras casas, noutros olhares e noutras mentes. Sonhos que renascem e que se renovam no coração de cada morador.
E continuo sentada naquele degrau aquecido pelo sol todo o dia, como se ele estivesse à minha espera. Foi testemunha de sonhos, ilusões e desilusões, sorrisos, gargalhadas, lágrimas e tristezas, pegadas leves e rápidas e de outras já pesadas e cansadas.
E dali, nas escadas de uma casa, no centro da freguesia, deram-se pinceladas que colaboraram para o belo quadro que é a freguesia de São Roque. E o quadro é retocado e renovado em cada dia, cada movimento, cada sonho concretizado de cada um dos seus moradores e por cada sonho que ainda nascerá.
Olho para o lado direito e deixo-me adormecer com os tons laranja do sol que já se despede de mim, ali do lado de São Martinho, num compromisso mútuo de que amanhã lá estarei para o ver nascer do outro lado, lá entre o mar e São Gonçalo.
No degrau cimeiro das escadas continuarei a sonhar…