Paula Noite
Paula Noite
Sempre vivi numa freguesia (São Jorge) onde em todas as casas, para além de um arco-íris de flores à porta, havia também, na sua maioria, um cão e/ou um gato.
Amigos de quatro patas, entenda-se os cães e os gatos, de que muito se fala.
Saçaricavam livremente, dormindo estendidos preguiçosamente na sombra da pereira ou da ameixieira no “terreiro” à frente da casa. Como guardas. A qualquer barulho, despertavam, estendendo um olhar atento aos arredores. Mal pressentiam o dono, orelhas arrebitadas, davam um salto abanando a cauda, numa festa efusiva que passava pelos saltos à volta dele e generosas lambidelas, seguindo-o para todo o lado.
Pousado o casaco, a foice ou a saca de lona (sarapilheira) que fazia de “molhelha”, para fazer uma ou outra diligência ou para tomar um “grogue” na “venda” da esquina, o Farrusco, o Funchal, o Bobi ou o Tareco (nomes comuns dos cães na altura)sentava-se ali vigilante, soltando um ladro ou rosnand, mostrando a dentadura a quem se atrevesse aproximar-se dos pertences do seu dono.
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A noite caía escura como breu.
No silêncio frio e no escuro da noite, ouvia-se o primeiro latido. E de repente, qualquer barulho era pretexto para um latido mais forte. E logo, de todos os sítios respondiam os outros cães. Como uma orquestra, desafinada por vezes.
Eram latidos fortes, por vezes uivos prolongados como lamentos, que nos faziam arrepiar. Um som cortante. Escondíamo-nos então debaixo dos cobertores, com medo, revivendo naquela hora todas as histórias de terror, de bruxas e fantasmas que eram contadas à noite em família. Histórias contadas no escuro da noite, à luz das labaredas crepitantes do “lar”. Cuspindo fogo e fumo e alimentando os nossos medos.
Era assim, em algumas noites. Noutras, na chamada lua dos gatos, era um miar prolongado, cortante, entre lutas e correrias.
Olhos que brilhavam no escuro como pequenas luas.
E vivíamos felizes, nós e eles. Eram nossos amigos que e sempre nos acompanhavam. E que não existiam nas ruas, abandonados.
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Hoje os amigos de quatro patas continuam a ser amigos. Meus e de todos nós.
De início, pequeninos, uma bolinha de pelo, fofa, com olhos cintilantes que nos fixam e nos conquistam e que passam a fazer parte da família. E são tratados como tal.
Criam-se laços, fortes, entre o animal e o dono. Um amor incondicional. Que combate a solidão de muitos, onde só ele (o animal) está presente, faz companhia à sua maneira, reduz a tristeza daquele que acompanha.
Sem raça definida, com raça, têm acompanhamento do veterinário, as vacinas em dia, a ração, o petisco, os brinquedos. E o chip também. E o amor do(s) dono(s). Mas há aqueles para quem ter um amigo destes é moda. Escolhem a raça e passeiam-no pela rua, ostentando um animal forte, que os arrasta em exercício contínuo e esgotante. Todos os dias à mesma hora aquele desfile. Até que se cansam. E abandonam o amigo lá longe, em lugar desconhecido, numa estrada fria e deserta, onde o animal vagueia tristemente em busca de alguém, de um dono, do seu dono… Alguns têm sorte. São adotados ou deambulam esqueléticos até cair. E algumas vezes arranjam um outro amigo, outra bolinha de pelo. Tão fofinha…..
Chegam depois as férias. E um animal, nessa altura, simplesmente atrapalha. E mais uma vez vão parar à rua deserta, sós, abandonados e esfomeados de comida e afeto. Da presença de um dono.
Então nós, amantes de animais, podemos com um gesto simples, na impossibilidade de adotar um destes animais, colocar água e comida, minimizando o sofrimento daqueles que tantas vezes nos dão lições. Lições de amor. De proteção, ao dono e aos filhotes. Que ensinam muitas vezes os humanos a serem pais e mães, quando protegem as suas crias. Lições de partilha e humildade.