Mara de Sousa Freitas
Mara de Sousa Freitas
“Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita. Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial. Venho à varanda e debruço-me para a noite.” (Aparição, de Vergílio Ferreira)
Agosto, lua quente de verão, este ano com a companhia especial de Marte, filho Juno e de Júpiter, o deus do impulso, da guerra e da determinação, e de Jupiter ou Zeus, o rei dos deuses e dos homens. As noites de verão e o encontro, ainda que breve, da beleza, do amor e do poder: a lua cheia, o céu estrelado, o deus Marte, a deusa Vénus, e o rei de Olimpo, sinal dos deuses e testemunho da vida na Terra; dos homens mortais; dos desafios; das lutas; das guerras; da contradição; da conquista; da beleza; do amor; da fertilidade; da traição; do respeito; do bom combate; dos feitos heróicos e, sempre, o regresso, o retornar ao ponto de partida, ou simplesmente a viagem.
É verdadeiramente extraordinário que as explicações sejam tão simples e que levemos uma vida inteira para compreendê-las. E quantas vezes voltamos atrás porque esquecemos? E quantas vezes traímos as memórias, a história e a nós mesmos na busca da “verdade perfeita”? Quantas formas de esquecer, de não saber ou de recusar aprender solidificamos, e quantas vezes deixamos de escutar a nossa “voz primordial”? Quantas vezes recusamos a viagem?
Agosto, doce ou amargo sabor a vida, amor, verdade, memórias, – quanto de nós tens para contar!
Talvez, para a maioria de nós agosto seja o mês do regresso, o mês de paragem, o momento em que regressamos à nossa velha casa e encontramos o abrigo. O (re)encontro com a família, os amigos, os lugares, os cheiros, as cores, a luz ou a escuridão.
A nossa pérola do Atlântico conhece bem este sentimento, esta necessidade de regressar para encontrar e voltar a partir. Para todos e cada um de nós, no horizonte da partida está sempre o regresso, pois a necessidade é o lugar, por excelência, do encontro. Talvez a nossa procura no Mundo, dos outros, nos outros, seja uma forma de nos lembrar que existimos e que esse existir é tão mais genuíno e autêntico e ganha tanto ou mais sentido, quanto o nosso reconhecimento pela afetividade, pelo amor e pelo cuidado do outro. Somos tanto mais, quanto nos damos e recebemos por essa relação incondicional e indelével que nos transporta para a eternidade, no coração daqueles que guardarão, para sempre, nas suas memórias, uma parte de nós que contrói, e faz também deles e de nós, uma história, memórias.
A alegria do reencontro, a serenidade de um abraço, a força de uma paisagem, a dor da ausência, a melancolia da solidão. Tudo ganha mais força no silêncio, no regresso e no encontro que tantas vezes nos mostra o desencontro. Os anos passam e, sucessivamente, no mês de agosto, na praia, nas festas, naquele final de tarde, no almoço em nossa casa, no jantar na casa da avó, voltamos às nossas raízes. Encontramos a avó, o avô, a mãe, o pai, os irmãos, os tios, os primos, os afilhados, os amigos de longa data, a família. Ganhamos, nestes momentos, um olhar autêntico, um valor incondicional pela presença, pelas mãos, pelo abraço, pelo olhar, pelo amor do outro, pela simples razão de sabermos que existem e que nós existimos, pelo aconchego de esperarmos e sermos esperados de forma incondicional e única.
O regresso é, sempre, este voltar, que tão bem identifica o quanto de nós está na nossa história, e o tesouro que ela representa para a história que escrevemos nos dias que passamos pela vida; nos dias em que a vida nos toca de um jeito especial; nos dias em que tocamos o coração do mundo através dos outros, e paulatinamente procuramos acertar e afinar as cordas do tanto que em nós habita. Cada dia da viagem é o desenhar do mapa, a escrita das coordenadas, o escutar do sentido, a procura delicada e cuidadosa de uma harmonia capaz de silenciar o ruído e descobrir novas e renovadas direcções, paisagens, diálogos. Como “outros olhos descobrem paisagens diferentes das que vemos[1].”
Agosto é o tempo do Sol, da praia, dos concertos, dos festivais, das viagens, dos encantos de verão, da espera pelo novo encontro depois das férias, do sofrimento pela distância, da ânsia pelo reencontro. Agosto é o mês que, com maior clareza, se presta a uma enormidade de antagonismos, de excessos e contradições e, por isso, talvez, o mês através do qual a natureza humana melhor pode explicar-se.
Na narrativa usamos a antítese para descrever este fenómeno entre a perda e a posse; a vida e a morte; a saúde e a doença; a arrogância e a simplicidade; a exterioridade do corpo e da vida e a sua interioridade; a esperança e o desalento; amor e o desamor; a afetividade e o abandono. Esta tensão em ser ou não ser, entre o sonho, o desejo e a realidade; esta tensão que, em si é intrinsecamente contraditória – ela complementa-se e exclui-se -, contudo é esta mesma tensão que faz o Homem avançar, adaptar-se, autoaperfeiçoar-se, regressar a casa e partir noutras direções.
Como a vida é curiosa! Corremos, desenfreadamente, em busca do tudo, do todo, do maior e mais preenchido. Procuramos nos reinos mais distantes aquilo que tantas vezes temos no nosso quintal, no nosso belo jardim, na nossa velha casa. Corremos em busca do Mundo e esquecemo-nos de levar-nos para esse Mundo, de deixar germinar as sementes e poder apreciar o seu florescimento, contemplar os seus frutos e encantarmo-nos com o seu sabor. A beleza da viagem é única, irrepetível e eterna e este regressar é, em si, a única viagem.
“Sinto, sinto nas vísceras a aparição fantástica das coisas, das ideias, de mim, e uma palavra que o diga coalha-me logo em pedra. Nada mais há na vida do que o sentir original, aí onde mal se instalam as palavras, como cinturões de ferro, aonde não chega o comércio das ideias cunhadas que circulam, se guardam nas algibeiras. […] Ah ter a evidência ácida do milagre que sou, de como infinitamente é necessário que eu esteja vivo, e ver depois, em fulgor, que tenho de morrer. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei – não do olhar dos outros[2].”
O Sol, a Lua, a Terra, as estrelas, esta sala vazia nesta noite de verão, neste mês de agosto são uma realidade. Eles existem em mim, para mim e, apenas através de mim, ganham um lugar em vida, hoje realidade, sonho, desejo, amanhã memória, um dia “o nada de tudo”.
Adeus agosto! São horas de partir, e nesta viagem levar-te comigo, na certeza porém que não parto só e não te deixo só, continuamos a viagem neste admirável mundo em que “nascemos homens, mas tornamo-nos humanos[3].”
[1] MAGALHÃES, Vasco Pinto, PEREIRA, Henrique M. – Pensar a Vida, Coimbra, Tenacitas, 2007.
[2] FERREIRA, Vergílio. – Aparição, Lisboa, Bertrand Editora, Lda. 1994.
[3] MAGALHÃES, Vasco Pinto, PEREIRA, Henrique M. – Pensar a Vida, Coimbra, Tenacitas, 2007.