Sónia Gonçalves
Sónia Gonçalves
Fechar sempre a porta. Primeiro uma de ferro e depois uma de madeira. A de ferro assemelhava-se aos portões de algumas lojas comerciais.
Numa e noutra, passávamos “ferros-pedreiro”. A de fora tinha aberturas. Permitia-nos falar com os vizinhos. Eram chineses. Achávamos os seus hábitos de vida estranhos, tanto que, muitas vezes, dávamos por nós a tentar entendê-los antes do jantar. “Não interessa”, decretava a minha mãe. E começávamos finalmente a falar no nosso dia-a-dia. A mesa cheia não dava a oportunidade para todos falarem, mas o meu pai e a minha mãe contavam algumas peripécias do dia e nós absorvíamos tudo de uma forma impressionante. Retinha cada palavra. De tal forma que hoje penso duas vezes antes de contar algumas situações mais hilariantes à frente da minha filha…
Mas eu falava das portas e do fecho destas para aludir ao facto de a minha infância e adolescência na Venezuela, em Caracas, terem sido marcadas por várias situações de insegurança que fizeram com que, na minha rotina diária, convivesse com o receio de, a qualquer momento, poder ser assaltada. Relatos na primeira pessoa de roubos por esticão, de assaltantes que matavam sem dó nem piedade moldaram a minha forma de estar na vida.
Em particular, marcou-me um episódio que testemunhei quando estava no quinto ano. Estudei num colégio católico e íamos sempre à missa nas datas festivas. Certa vez, em plena Santa Missa, ouvimos, da rua, passos acelerados de um jovem que – na sua ignorância – corria na tentativa de não ter de entregar aos ladrões os seus ténis de marca. Ouviram-se dois estrondosos tiros. Eu ia participar no ofertório e, por estar junto à porta, saí – também ingénua! – para ver o que se passava. No chão, restava apenas o corpo do jovem, ensanguentado. Os pés descalços fizeram-me perceber o que tinha acontecido. A minha professora, aos gritos, levara-me para dentro. Fui chamada à Direção devido à minha imprudência…
Nunca mais pedi aos meus pais sapatilhas caras e o medo de ser assaltada perseguia-me. Mesmo na companhia de um adulto, qualquer som de alguém que me pudesse estar a perseguir (felizmente, nunca aconteceu, mas o fruto da imaginação encarregava-se de criar trágicos cenários hipotéticos) faziam-me vir à memória a imagem daquele jovem prostrado. Imaginava que poderiam matar-me também. Entrar e fechar-me a sete chaves tornou-se, portanto, algo ainda mais natural.
De Caracas para o Jardim da Serra, onde não se passava nada, estes hábitos foram até motivo de chacota. “Sempre tudo fechado?”, perguntavam algumas visitas, surpreendidas. Em 1990, nesta freguesia que me acolheu, podíamos sair e deixar a casa aberta sem qualquer preocupação. Ficamos, eu e a minha família, tão perplexos com esta bondade das pessoas que demoramos a acreditar que fosse real. Quando nos esquecíamos de uma porta ou uma janela aberta, púnhamos as mãos à cabeça, mas rapidamente alguém dizia, em tom de consolação: “Ninguém mexe em nada!”. E efetivamente assim era. “Estamos no céu”, cheguei a pensar sobre aquele local que ainda hoje vejo como “um cantinho do céu”, só que muito frio (já deu para ver que não gosto muito do clima gélido que se faz sentir no Jardim da Serra, no Inverno).
Com os anos, a criminalidade aumentou de uma forma geral na Europa, no País e na Região. Uma notícia recentemente publicada no DIÁRIO sobre uma onda de assaltos na freguesia fez-me refletir sobre o que pode ser feito para travar os prevaricadores, que arrombam portas à procura de dinheiro fácil.
Não tenho uma fórmula mágica, não me apraz falar nem de polícia municipal nem de como deve ser a atuação da PSP, da PJ ou de nenhuma outra instituição. Acho é que alguma coisa deve ser feita. “Rondas” por parte dos moradores pode não ser uma boa opção…