Paula Noite
Paula Noite
O olhar estende-se para onde o sol beija o mar. E se envolvem os dois, num abraço apertado, de azul carregado.
Sentada no calhau, gozo os últimos raios de sol. De um sol que aparece e teima em não ficar.
Ao meu lado, com águas muito quietas, a lagoa que reflete a sombra da encosta sobranceira.
Numa ilha com cinturão de mar, esta lagoa é a única de água doce, alimentada pelas águas da Ribeira de São Jorge. Ribeira que se estende sinuosamente como uma serpente preguiçosa, desde as montanhas até à foz, levando as suas águas para alimentar a lagoa que foi a piscina natural de muitos, no Verão.
Com uma nova forma todos os anos, na sequência da invasão do mar com ondas alterosas em momentos de fúria e duma máquina que em cada verão afasta os pedregulhos lá depositados, preparando o mergulho dos veraneantes. Era do fio que a observávamos para fazer depois associações. Parecia um monstro, um mapa de um país qualquer que nem conhecíamos (só o nome e a sua forma no mapa). E era esta a nossa praia, cheia de calhaus que rolavam sob os nossos pés ou voavam das nossas mãos quando os atirámos sobre as águas da lagoa, que na sua quietude, ao serem tocadas, faziam círculos perfeitos a cada salto das pedras.
E a maioria de nós, sem sair dali viajava. Íamos às Canárias e ao porto Santo.
Sim, porque as rochas tinham nome. E havia um concurso sem nome e sem júri em que cada um se atirava para ver quem dava o melhor mergulho. O Porto Santo ficava ali mesmo, mas as Canárias, mais no alto, eram alcançadas por alguns dos mais corajosos. E era de lá que os seus corpos pareciam voar, muito direitos, rumo à lagoa num mergulho quase perfeito.
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Sucedem-se as horas, os dias, os meses, os anos. O tempo galopa, passando num rodopio infernal.
Quando nos apercebemos, o ontem já passou, o presente é tão efémero, e o futuro é quase já amanhã.
E parece m tão longínquas essas memórias….
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Serpenteia as encostas (de São Jorge e santana) o Caminho Real nº 23, ligação preciosa em tempos, para o Norte da ilha. Calcetado em pedra, abriga as memórias de quase escravidão daqueles que, sob o sol escaldante, a chuva copiosa ou o vento agreste continuavam teimosamente numa viagem a pé, vergados sob a carga vinda no Bútio ou noutro barco qualquer que descarregara ali ao lado, no cais de São Jorge, ou sob o peso de uma rede onde estendidos iam os fidalgos ou os doentes.
Um Caminho Real que sendo uma página da nossa história, da nossa memória, se vai degradando dia para dia, desde o Calhau até ao Fio (chamado hoje de Cabo Aéreo). Porque o terreno cede. Porque a água corre de forma vadia e descontrolada sobre ele, arrancando as pedras ali colocadas com suor e lágrimas de muitos. Água, resto de uma rega que ninguém controla.
Um caminho real (nº 23) para o futuro é tema de concurso fotográfico. Mas queremos um caminho real não só em memória fotográfica, mas também um caminho onde possamos andar ou correr quando nos apetecer, por onde até passem os atletas de um trail qualquer.
Porque o grau de desenvolvimento de uma sociedade também se mede pela sua capacidade de preservar o seu património.
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Aproxima-se a passos largos o mês de agosto, para uma grande maioria, o mês das férias.
Férias que nos empurram para um calhau (o de São Jorge), onde as águas límpidas e transparentes nos deixam ver generosamente o fundo dum mar repleto de peixes, desde há muito protegidos por um galardão de Reserva Natural da Rocha do Navio, que começando na Ponta do Clérigo no Faial, se estende até à Ponta de São Jorge junto ao cais.
Numa praia onde depois de um banho de mar pode mergulhar numa lagoa de água doce, natural que permaneceu (e bem) no tempo.
Junto à rocha uma sociedade dita de desenvolvimento construiu as piscinas. Fechadas agora. Um balneário para apoio aos banhistas, ostenta as suas portas frente à lagoa. Fechadas como a do acesso à piscina.
Até quando?
Se calhar não importa, nós nem sequer reclamamos!
Porque o sol vem, mas teima em não ficar. E nós que até já tínhamos o protetor solar! É que a nossa pele tem memória.
E nós também…
E o sol que vem e vai. E teima em não ficar….