Kevin Lynch foi um urbanista americano, que se dedicou ao estudo da imagem da cidade e como as pessoas percecionam e utilizam o seu espaço. Segundo o autor as cidades são percecionadas e vividas de forma diferente por cada pessoa, que traça o seu mapa mental, a partir de pontos de referência físicos objetivos, associados a sentimentos subjetivos e memórias que a cidade desperta em cada um.
Não existe uma Câmara de Lobos, mas uma miríade de Câmara de lobos. Tantas quantas as pessoas que trafegam pelo seu espaço.
Por hipótese, para a maioria dos turistas, Câmara de Lobos será uma aguarela colorida, superficial. Percecionam a cidade pelo seu valor facial. A cidade estética, ponto de passagem para marcar no mapa dos locais visitados.
Para o cidadão local a homogeneidade é percecionada apenas de forma abstrata, quando falam de Câmara de Lobos a quem porventura não a conhece, ou na defesa das suas belezas.
A verdade é que para cada um de nós, Câmara de Lobos é única, no sentido literal do termo. Sem nos apercebermos traçamos fronteiras, vias de circulação pessoais, pontos de referência que associamos a vivências e sentimentos que certo ponto nos proporciona.
O meu mapa pessoal começou num ponto envolto em névoa que se dissipava à medida que alargava as minhas fronteiras. O primeiro contacto que tive com a grandeza de Câmara de Lobos foi através da janela de um Renault 5, com dois volantes, em que o meu pai ensinou muitos câmara-lobenses a conduzir.
De vez em quando acompanhava-o no dia de trabalho, sentado no banco de trás. A névoa levantava-se a cada passeio revelando recantos até então desconhecidos. O recanto mais temido pelos jovens instruendos, e que deverá ser um dos tais pontos de referência nos seus mapas pessoais, era o beco do Serrado da Adega. Apesar de beco, era largo o suficiente para mal passar um carro e, como bónus, terminava num estreito patamar em que eram obrigados a fazer inversão de marcha, com o risco acrescido de caírem para dentro de um poio de bananeiras.
Reza a história que, em dia de exame, havia familiares de jovens condutores que paravam lá o seu carro, de capot aberto, a simular avaria à entrada do beco, para que o examinador não os pudesse levar para lá.
A minha cidade cresceu, dos Coolobos tracei uma linha até à Escola do P3 na rua da Calçada do Espirito Santo onde tinha catequese. A curva do cemitério era um ponto de referência, onde todas as tardes se juntavam os jovens recomendáveis e menos recomendáveis das redondezas. As minhas paragens por lá eram breves e apenas se por lá andasse o meu irmão ou algum amigo da catequese com quem partilhava um cesão de mel, comprado na venda do Cambado.
No início da adolescência a catequese passa a ser lecionada depois da missa vespertina de sábado na igreja de São Sebastião. A vila passa a estar aberta à descoberta, sem a supervisão dos pais.
Um dos meus pontos de referência, e de muitos jovens da minha idade, era o salão de jogos do Roxo, no Largo o Poço, de onde tínhamos de fugir sempre que chegava o Açoriano, polícia da esquadra de Câmara de Lobos que não tinha pudor de dar um belo puxão de orelhas pedagógico a qualquer menor que apanhasse por lá. Felizmente o salão tinha três saídas e consegui sempre evitar os temidos, mas respeitados, dedos da lei.
Com o passar dos anos as fronteiras da minha Câmara de Lobos expandiram-se. Hoje estão mais difusas, não há sítios proibidos, já ninguém para na curva do cemitério, a venda do Cambado há muito que fechou e já não existe salão de jogos do Roxo. Mas uma constante afetiva mantem-se: o eixo central da minha cidade pessoal será sempre aquele que liga os Coolobos à igreja de São Sebastião, pela calçada do Espirito Santo, Largo do Poço e rua São João de Deus.
Magno Bettencourt, Sociólogo