Jaime Gomes
Jaime Gomes
A viagem levava entre duas horas e meia a três horas, dependendo do movimento de saída e recolha de passageiros no trajeto. Refiro-me naturalmente ao trajeto entre Ponta Delgada e Funchal pela antiga estrada regional. Para mim que uma ida ao Funchal era sinónimo de alegria e excitação era também acompanhada, de uns menos bonitos enjoos, e alguma angústia de saber mesmo antes de a viagem começar que ia vomitar. A minha mãe, lá me enfiava a três pancadas e lá ia goela abaixo um comprimido anti enjoo, sim porque nessa idade já o próprio comprimido dava engulhos…nada de novo, adiante, passemos a coisas mais agradáveis.
E esta conversa vem a propósito de que as distâncias de outrora reduziram-se, diluíram-se em túneis e vias rápidas, passaram de horas a minutos, passaram das curvas e contra curvas, a estradas a direito, e de muitos quilómetros a menos de metade. Ganhou-se tempo, comodidade, alguma ansiedade e a noção de que agora vivemos no 1.º mundo, desenvolvido e limpo. Perdeu-se tempo, e horizontes…perderam-se perspetivas do real e do importante, do banho no ar denso da manhã mas isso agora não interessa nada, adiante.
As distâncias, materializadas nas antigas estradas e caminhos fazem parte da nossa identidade, e a Ponta Delgada não é exceção. A identidade alicerçada em coisa únicas, só nossas. Identidade que se, componha também de isolamento, com tudo o que isso tem de mau e de bom. Desconfiava-se do estranho e de fora mas por isso nunca se deixou por atender um qualquer pedido por desconfiança ou medo.
Temos expressões só nossas e um sotaque próprio e apelidam-nos de Lapeiros, temos igreja junto ao mar e uma piscina, que já foi de mar, agora é junto ao mar e já tivemos ondas que diziam ser das melhores da Madeira. Hoje temos um pouco mais de betão, mas temos Internet e a noção de que o mundo, esse não se esgota, numa curva ao chegar a São Vicente ou na Vista do Bom Jesus, estendeu-se e cresceu.
Do isolamento, abrimos a janela e já agora a porta e entrou o Mundo, cada vez mais perto e de fácil acesso à distância de um toque de dedos. Descobrimos novos Eus e a freguesia ajustou-se, algumas palavras caíram em desuso, outras apareceram partilhadas até à exaustão nas redes sociais.
Tive a sorte imensa de ter acompanhado o antes e o depois, mas o que me fazem saudades mesmo, são os tempos de entremeio…os tempos de sol, da adolescência, da piscina antiga e do mar a entrar, mas isso, isso é outra conversa para muitas alegrias e olhos aguados.
Não queria que nós, os Lapeiros tivéssemos a noção de um espaço finito numa curva do caminho, entre Ponta Delgada e São Vicente, agrada-me pensar que existem mais, e outros lugares, que o mundo se estende e que as possibilidades são muitas. Que conseguimos manter o que nos faz diferentes, que conseguimos manter vivas as tradições e as palavras. Que ainda temos repositórios fiéis de um passado, único, duro e agora, já pintado de um amarelo velho, como nas fotos antigas. Importa pois recolher e gravar toda essa informação preservando-a para o futuro. Que ninguém se aproprie do legado cultural do povo, auto intitulando-se de donos daquilo que não é deles, é de todos nós. As tradições existem porque o povo as mantém vivas.
Eu, que sou daqui, que me componho-me de raízes deste lugar, cá vos espero…