Duarte Olim
Duarte Olim
Se as montanhas e a penha que custodiam o Porto da Cruz, eram elementos geológicos que ofereciam resguardo à localidade, também representavam isolamento e adversidade, primeiro desencorajando a sair da sua protecção, depois desamparando quem, por necessidade, precisava ir ao Funchal a pé, enfrentando, carregado, riscos, só para juntar um humilde pecúlio.
Agora, nessas elevações, circulam, em recreação, montanhistas e caminheiros, e beneficiam das suas alturas, homens-pássaro na Penha D’águia que, afoitos, se fazem ao abismo, ou amantes do voo que, no Larano ou na Portela, munidos do velame do parapente, planam na cadência de uma pluma, em rendição com a paisagem.
Se entre o Larano e Machico, seguindo pela Vereda do Risco, se desenha um trilho usado para acarretar vinho em borrachos, mesmo que incentivado por um grupo envolvido na mesma empreitada, agora, como percurso, percorre-se-o em corrida ou a pé, uns por desporto, outros por lazer. E o búzio que antes alienava da penosa moição, já não se ouve.
Se a ondulação que acerca o litoral, na sua persistência cíclica, se alinha como um relógio que mede o tempo, por ela vinham, rasgando correntes e azedumes de Poseidon, temíveis corsários ou piratas de sôfrega cobiça pelo alheio. Nas vagas melhor formadas, algumas que devoraram afoitos e incautos, recreiam-se actualmente surfistas que, no flanco da onda que rebenta, se escorregam em pranchas e fogem destemidos da secção que quebra paralelamente à praia. Noutro tempo, se alguém no calhau os avistasse, enquanto ensacava umas lapas no calhau do Sousa, diria: “não têm nada que façam! Vadios!”.
Se as estradas, caminhos, tão escassos antes, tão abundantes agora, antes eram campo de jogos, onde se instalavam balizas de pedras e entre elas se ensaiava o futebol, nelas ainda se jogava ao pião, se ardiam fogueiras pelo São João ou se rolava sobre carros de esferas. Agora, tantos são os automóveis que não há espaço para dessas brincadeiras de improviso, se fazer passatempo.
Se no retábulo da igreja paroquial, antes se recriava, através de vitrais dourados, o cenário de céu estrelado, deixando por eles a luminosidade das manhãs se insinuar, lentamente, discretamente, para não alienar o povo do rito religioso, hoje, a quem guarda memória dessa expressão visual, não observa senão uma parede branca de estéril efeito.
Se as sombras da noite alimentavam o imaginário popular que, em certas épocas faziam ao rural avistar na Penha d’Águia luzes bruxuleantes que, asseverava-se, mostravam pretensos concílios de feiticeiras; ou que nas sombras que lamparinas desmaiadas projectavam nas paredes, se viam contornos de entes passados, ou figuras personificando o demónio, hoje o escuro é vencido pela iluminação eléctrica que, em cada lar, abstrai o local com as mesmas notícias, o mesmo entretenimento, as mesmas actualidades que recebe um forasteiro. Às vezes, fora, tanta é a luz que, na noite, nem há lugar para que cresça o mistério.
Se corujas assomavam na noite, abeirando-se das casas, esquivas, era presságio de morte. As cagarras, no seu grasnar embriagado, prediziam outras sentenças escabrosas. Se no primeiro caso, as mortes continuam, já não é pelo assomar de corujas que, ali, deixaram de aparecer. As cagarras persistem nas rochas e o seu canto não mais atemoriza.
E se, nesta alusão ao antes e agora, houvesse espaço para mais desvelos, ver-se-ia que o Porto da Cruz, tão rico, precisa cativar este imaginário, para que as memórias da sua história não sejam barro que se desforma com a erosão do tempo, mas pedra dura, tão imponente e inexpugnável como a que se ergue dantesca e delimita o Faial.