Mara de Sousa Freitas
Mara de Sousa Freitas
O tempo é, talvez, o nosso mais precioso bem, aquele que nos é entregue para transformar em vida; aquele que, simultaneamente, foge a cada instante e confronta com a necessidade de vivê-lo, a cada segundo, tal como a vida, ou, talvez, a morte, esse momento entre o tempo e o não tempo, entre o tempo da vida e aquele instante último, o fim do tempo.
Esta é uma reflexão tão importante para todos e para cada um: como utilizamos o nosso tempo? O que fazemos no tempo de vida, sendo esta a sua condição de possibilidade, para aquele que vive? Qual o valor que atribuímos ao tempo?
Será que o tempo pode ser uma dimensão da nossa sensibilidade? Se sim, então, o tempo pode também estar intimamente ligado às nossas emoções, sensações físicas ou emocionais, aos nossos sentimentos. Não posso deixar de trazer à colação – tendo, também, aprendido o valor do tempo no cuidar do outro particularmente vulnerável –, a relação entre Ser, Tempo, Sensibilidade, Empatia, Compaixão e, last but not least, Amor.
Quando paramos para analisar onde empreendemos o nosso tempo, qual o resultado? A família, enquanto pilar da nossa vida e sede da nossa afetividade mais íntima; o trabalho, indubitavelmente, por razões de primeira necessidade, tendo a sorte, ou não, de poder fazer aquilo de que gostamos e, assim, poder retirar desse tempo emoções e sentimentos muito positivos; os amigos, com quem partilhamos a nossa vida; os colegas; as comunidades onde estamos inseridos; o mundo; os sonhos;… Os sonhos !
E o que determina a alocação desse tempo? Quais as razões que estão na origem das nossas escolhas e decisões sobre o tempo? Arrisco a dizer, numa hierarquia de necessidades, satisfeitas as necessidades fisiológicas, escolhemos o que para nós é importante, refletimos a nossa hierarquia de valores nas preferências exteriorizadas. A decisão está ancorada nos valores que atribuímos à realidade, tal como se nos é apresentada e tal como a olhamos – num olhar que é, conjuntamente, um ato de escolha, de querer ver, de querer olhar –, e a “realidade não é uma coisa genérica, nem tem lugar num olhar rápido, ela está cheia de detalhes que não se revelam a quem não seja sensível ao tempo[1]”. O olhar, a escolha de querer ver, encerra uma dimensão de intemporalidade, pois o tempo desse olhar determina a memória para a eternidade, a permanência, muita além do momento que determinou o desejo de olhar, e muito além do momento que permitiu ver aquilo que decidimos olhar.
Tempo e Valores revelam-se, desta forma, partes indissociáveis na equação do sentido que queremos dar à vida, na afetividade, na sensibilidade, no amor, no trabalho, no marco de eternidade que tecemos através da forma como (re)conhecemos e nos relacionamos com o outro, com os outros, e com o mundo. O tempo ganha, portanto, uma valoração especial, pois nele reconhecemos o valor atribuído da escolha, da atenção, do olhar, do cuidado, da vontade de compreender os detalhes além do olhar rápido que não vê.
[1] CARROLL, L., Alice no País das Maravilhas, 1865.
[2] D. José Tolentino Mendonça. In Avvenire, abril de 2019.
Faço a minha declaração de interesses nesta reflexão e começo por agradecer a todas e a todos aqueles com quem aprendi o valor do tempo. Agradecer cada minuto dessa partilha de vida, de sabedoria, de sentido e de amor. Dizer que sem eles jamais hoje estaria a escrever sobre o tempo, a vida, a morte e o amor, pois o tempo pode ser «apenas um segundo», e nesse segundo tudo ganha um novo sentido. Dizer, também, que nesse tempo a vossa eternidade se teceu em mim e refiro-me, não apenas ao tempo da minha infância, onde cada passo se revestiu dos valores que hoje e sempre procuro reafirmar, transmitidos na família e na minha casa da vida, mas também naquela que tem sido uma fonte inesgotável de sabedoria prática: o acompanhamento na doença, na vulnerabilidade e na morte, assim como a reflexão bioética que me conduz. Compreender o tempo, quando ele se afigura limitado e impõe a condição ontológica do ser humano, reveste-se de contornos que excedem qualquer doutrina, por isso, a minha proximidade com aqueles que viveram ou vivem a fase final da vida, com a sua sabedoria, com a sua equação de sentido de vida, fundou um significado especial para o tempo, e para a forma como me parece ser indispensável vivê-lo, afirmá-lo e eternizá-lo. Aprender a dizer adeus, aprender no acompanhamento do processo do fim do tempo de cada pessoa é, como tão bem recordou Tolstói, aprender como viver e, sobretudo, como viver bem.
Foi na minha aldeia, que comecei a compreender o que era o tempo, pela mão do avô e da avó, nos demorados passeios de final de tarde. Caminhávamos lentamente, a idade já não lhes permitia outro ritmo, demorávamo-nos a olhar as flores, os ninhos dos pássaros, os rituais da colmeia. Como era belo esse tempo de contemplação, de verdadeiro interesse pela realidade e pelos seus mistérios. A idade dos porquês inundava os momentos com perguntas e, rapidamente, a voz serena e sábia dizia: «Minha senhora, agora vê com atenção o que está a acontecer, sente e escuta, depois vamos às explicações, pode ser?». Perguntas retóricas de alguém, a quem o tempo também terá ensinado o que verdadeiramente importava. Era o tempo de ver, sentir, escutar e conhecer a realidade. Nos passeios de final de tarde, estavam, igualmente, contempladas as visitas à família, aos amigos, aos vizinhos, especialmente aos que estavam doentes, ou que estavam sozinhos – recordo também o chá e o bolo preto para acompanhar os rituais do lugar que habita em nós –, e nesses encontros nada mais havia além do estar, desse encontro com o outro, da partilha de um sentir, da construção de um caminho partilhado, de um sentido, de um tempo, aquele tempo.
Na aldeia, praticamente todos os produtos eram da «agricultura biológica», deliciosos e únicos, aliás, ainda o são. O leite da vaca e da cabra, o queijo fresco e a manteiga artesanal, o mel das nossas abelhas, o pão de batata-doce e o bolo do caco… A criação e o cuidar dos animais da quinta. O cultivo de cada verdura, legume, fruta e das plantas foram, conjuntamente, fonte de aprendizagem sobre o significado do tempo. Recordo o dia em que o pai disse: «Hoje vais plantar esta árvore. Ficas responsável por cuidar dela todos os dias. Vais poder vê-la crescer e dar os seus frutos, o primeiro fruto será para ti!». Era uma macieira, mais especificamente a árvore, cujo fruto era o pêro calhau, um dos meus favoritos. E como eu tive dificuldade em compreender, porque demorava tanto tempo… Todos os dias eu perguntava quando chegariam os pêros. Quando numa primavera nasceram as flores, rapidamente chegou o protesto para dizer que, afinal, tinham nascido flores e não pêros… era assim, um caminho! Afinal, o meu tempo queria-se mais rápido que o tempo da macieira, mas tudo tem o seu tempo, e tudo acontece no seu tempo. E chegou o tempo de poder provar o delicioso pêro calhau.
A vida desde cedo convidou-me a compreender este tempo finito através da morte. A memória mais antiga é dos meus três anos, a morte de uma tia-avó; nos meus seis, morrera o «Valente», o meu pastor alemão; aos oito disse adeus a um dos homens da minha vida, o avô, três dias antes de um dia especial, que havíamos sonhado juntos, entre muitos outros acontecimentos até ao momento presente, e são tantos… O tempo teve sempre esta beleza de ser a possibilidade de encontro, de partilha, de caminho, de amor, de eternidade, que vive dentro de nós, porquanto o tempo é finito e amanhã poderá já ser tarde. Já na vida adulta, e no âmbito profissional, o cuidar na doença grave, progressiva e avançada restituiu-me a lucidez e transparência deste valor do tempo, por vezes perdido por entre os mil e um afazeres da vida quotidiana.
No fim do tempo, o que é que realmente importa? – a questão era persistente. A resposta era clara e inequívoca: o que importa, no fim do tempo, é a única coisa que importou ou deveria ter importado, toda a vida, e do qual a maioria se desvia, esquece, negligencia: chama-se Amor. O tempo que alguém nos dedica, a atenção que nos é dirigida, através da presença inteira, do olhar, da escuta, da empatia, da compaixão, do cuidado. No fim – como tantas vezes ouvi daqueles que têm sido os mestres do tempo –, todos esperamos ouvir: «É tão bom que tu existas!», «Eu estou aqui para ti!», «Não estás sozinho!», «Permanecerás connosco!». Parece tão simples, não obstante revela-se tão complexo. Por vezes, tão escasso. No fim, todos queremos regressar a casa e ser, simplesmente, o que somos, sem mais ruídos, sem máscaras, apenas Ser, para alguém, que nos devolve num éthos que designa a casa do Homem, esse lugar de estadia permanente e habitual, de um abrigo protetor, de uma habitação, que no seu significado grego – Oikos –, não diz respeito a algo concluído, pronto, mas sim aberto a uma construção e reconstrução permanente, até o seu termo, o fim do tempo. No fim, tal como em cada dia, o que importa, quando o silêncio se instala, quando o ruído se esconde, é este abrigo do Ser, neste regresso a casa, nesta hospitalidade, neste «É tão bom que tu existas e que possamos estar aqui!» e, neste segundo, sabemos que tudo fez sentido.
A vida convida-nos a reconhecer o significado da permanência do tempo, da persistência do tempo ou, quiçá, da «persistência da memória», às vezes, apenas num segundo. Ser é este caminhar para o outro e através do outro, neste tempo tão bem ilustrado na arte de Salvador Dalí – os relógios que estão a derreter-se, tal como o queijo camembert, marcam um horário diferente, procurando simbolizar a relatividade do tempo e do espaço, deste lugar que é, em si mesmo, um modo de ser – Éthos –, e a procura persistente e permanente em busca do viver bem, estar bem, da ética, na sua relação com os princípios fundadores do comportamento humano, da preservação da vida. Este modo de ser descobre, na realidade, o seu significado arcaico, o de cura, o de cuidado, que significa a inquietação, a preocupação, a amizade e o amor.
O tempo é esta dimensão do nosso amor pelo outro, pelos outros e pela vida no mundo e propaga-se a cada segundo, em cada olhar, em cada gesto, às vezes apenas num segundo. Nele ficam inscritas as marcas da eternidade, aquela que fica gravada no encontro, e nos corações que foram tocados. Somos nesse tempo de eternidade.