As memórias também são construídas de aromas. Há muitos anos, à entrada da “vila”, junto ao jardim de São francisco, o visitante era recebido pelo aroma inconfundível do “bacalhau” que secava ao sol na zona das Salinas. Não era um cheiro agradável mas não deixava dúvidas que estavam a chegar a uma vila piscatória.
A Gata (Dalatias Licha) a Xara (Centrophorus Squamosus) e a Sapata (Deania Calcea) foram durante muitos anos presença assídua nas mesas das humildes famílias dos pescadores, que transformaram estas três espécies no “fiel amigo” de Câmara de Lobos.
O óleo extraído dos seus fígados alumiava as candeias dos barcos nas longas noites de pesca e a sua pele era utilizada como lixa por sapateiros e marceneiros. A poncha era invariavelmente acompanhada por um dentinho de Gata de escabeche ou cebolada. Peixes sem valor comercial, resultado acidental da pesca do peixe-espada preto, que o engenho, e talvez a fome, transformaram em referência gastronómica do concelho.
Antes da primeira proibição de comercialização, em 2015, o preço em lota destas espécies era de 1,5 euros ao quilo. Esta semana encontra Gata à venda no mercado dos lavradores a 19,5 euros. Uma decisão burocrática transformou o prato do povo em iguaria ao alcance de poucos.
Em novembro de 2016 é levantada a interdição à comercialização da espécie e o bacalhau de Câmara de Lobos volta a ser visto a secar no varadouro, nas amuras da embarcação Sá Carneiro. Mas nunca mais voltou a ser visto na mesa das famílias humildes.
Agora, em 2021, foi anunciada nova interdição à captura destes peixes em nome da conservação das espécies. A verdade é que proibir a sua captura é o mesmo que proibir que chova. Continuaram a ser pescados de forma residual. Como a sua captura acidental decorre a cerca de mil metros de profundidade, a mais de 100 atmosferas, chegam à superfície já sem vida. Dos gabinetes de Bruxelas decretaram que devem ser devolvidos ao mar em nome dessa conservação.
A comercialização da Xara, da Gata e da Sapata, além de trazer um ganho económico extra aos pescadores, permite aferir de forma inequívoca o estado de conservação das espécies aferindo a diminuição ou aumento das quantidades capturadas de acordo com as quantidades entradas em lota. A única coisa que a União Europeia alcança com esta proibição é impedir tal conhecimento, já que os tubarões de profundidade capturados serão simplesmente atirados borda fora.
Se for tomar uma poncha por estes dias a Câmara de Lobos e tiver a sorte de lhe oferecerem um dentinho de Gata considere-se um privilegiado, à mesa dos Câmara-lobenses, em breve, nem o cheiro!