Sónia Gonçalves
Sónia Gonçalves
Numa visita aos meus pais, nostálgica, dei por mim a folhear os velhos álbuns de fotografias. Alguns já bolorentos, mas todos cheios de momentos deliciosos que me conseguem sempre arrancar um sorriso.
No meio de tantos, um livro inteirinho destaca-se pelo facto de ser muito antigo. É que na altura não se faziam muitas fotografias… Nem do casamento os meus pais têm registos! A história, triste mas um pouco cómica, é conhecida por toda a família: um tio do Brasil, de férias no Jardim da Serra, ofereceu-se para fazer a reportagem. Os noivos não pensaram duas vezes, pois as despesas eram mais do que muitas. E foi assim: nubentes e convidados pousaram com sorrisos, mas as revelações dos rolos correram mal e não sobrou nem uma única imagem para mostrar às gerações vindouras!
Mas voltemos ao baú de recordações e àquele álbum que me chamou a atenção. Nele, uma figura predomina. Fotos do meu pai surgem em 99% das páginas. É retratado como um dos heróis de Ultramar. Fazia parte do Batalhão 4912 e esteve em Angola 19 meses, mas antes cerca de um ano em Leiria e na Póvoa de Varzim, em preparação física e emocional.
As fotografias serviram para avivar a minha memória, pois passei a minha infância a admirar uma tatuagem que o meu pai tem no braço e a ouvir as muitas histórias de guerra. Aquela marca permanente até nem é nada de especial. Diz apenas “Batalhão 4912”. Alguns soldados imprimiram para sempre o “amor de mãe” ou figuras de combate para assegurar o valor que davam à Pátria. Não fazia ideia de qual era a finalidade desta. Algumas vezes, passava os dedos sobre a tatuagem e pedia-lhe para me contar “histórias da tropa”. Nem sempre acedia ao meu pedido, mas às vezes revelava, a mim e às minhas irmãs, episódios interessantes. Aos amigos, relatava os feitos mais heróicos e cómicos. Ouvia-os sempre com atenção. Como filha de um ex-combatente, posso dizer que as suas vivências permitiram-me construir uma espécie de “memórias de guerra”.
Aos seus relatos, juntavam-se as histórias que a minha mãe nos ia contando ao longo dos anos. Duas perspetivas interessantes: a do soldado que partiu e deixou a mulher e uma filha com apenas um mês e a da sua esposa, de 16 anos, recém-casada, que se viu obrigada a ganhar maturidade.
Em Angola, o meu pai fora colocado numa posição confortável, na cozinha, mas pediu para ser transferido para uma equipa de combate, o que significava ir para o mato, à procura de bombas e do inimigo.
Esta opção valeu-lhe, por parte da minha mãe, uma atitude recriminatória que durou décadas. “Podias ter morrido!”, sempre a ouvi rematar quando ele contava as suas façanhas.
Só ela sabe o que também sofreu. Ela e tantas outras mulheres que se viram, sozinhas, a braços com os filhos e as responsabilidades que os combatentes tiveram de deixar para trás para servir o País. Ainda hoje, ela lamenta o facto de Portugal ter lutado tanto para nada. “Perdemos tudo”, lamenta inúmeras vezes.
O Jardim da Serra teve muitos “filhos da guerra”. Muitas mulheres, como a minha mãe, desesperavam pela chegada do carteiro. Nem precisavam do alerta da sua chegada. Antes do som da corneta, já se juntavam no local habitual, angustiadas, pois as “novas” poderiam ser boas ou más. Ele trazia habitualmente cartas ou cassetes com gravações que apaziguavam as saudades. Contudo, também anunciava os nomes daqueles que não sobreviveram, dos que perderam a vida a lutar pela sua Pátria.
Não havia muitos homens no Jardim da Serra. A maior parte estava no Ultramar ou emigrara. As mulheres não deviam sair de casa, por precaução. Sobretudo à noite. O destino decretara-lhes a espera: ou pelo regresso dos combatentes ou pela sua hora de acompanhar o seu homem…