António Jorge Pinto
António Jorge Pinto
A proverbial sabedoria popular diz que a primeira impressão é a que fica. Vou fazer um recuo deliberado aos meus verdes anos, abrir o sótão das minhas memórias e trazer à luz do dia a primeira fotografia que fiz de São Gonçalo.
Tem mais de quatro décadas. Era fevereiro. Tempo sombrio. As paredes do cemitério pintadas de cor ocre deslavada. Do outro lado das paredes, um grande pedaço de mim acabara de ser sepultado naquela terra lamacenta e fria. Ninguém deveria ter poderes para roubar o pai a uma criança de 12 anos. Foi o meu primeiro desassossego, a minha primeira desordem espiritual e a minha primeira zanga com Deus!
Vem desse tempo a minha relação com a freguesia de São Gonçalo. Nos anos seguintes à morte do meu pai, acompanhei a minha mãe nos seus silêncios e dor, enquanto ajeitava as jarras de barro cheias de gerberas plantadas na campa.
As viagens de saudade a São Gonçalo e o muito de mim que ali havia de ficar para sempre, foi a semente que germinou um forte laço sentimental com a freguesia só comparável ao que sinto pela minha terra de nascimento, a freguesia de São Martinho.
Há mais de 20 anos que escolhi São Gonçalo para reduto familiar. Foi o seu clima, a sua quietude e autenticidade, os seus caminhos e estradas, singulares balcões panorâmicos sobre o Funchal, a sua história, o seu potencial económico e social, a proximidade das serranias e do centro do Funchal que não me deixaram vacilar quando tive de tomar a opção.
Aprecio muito a autenticidade da freguesia de São Gonçalo. Mas não me conformo com a inércia, a ausência de uma liderança forte e inovadora que mobilize e desenvolva projectos sociais, culturais e económicos consentâneos com as necessidades reais das pessoas, mas suficientemente ambiciosos para projectar uma nova dinâmica local e acabar com a imagem de freguesia “parada no tempo”.
De um mogo geral, a imagem de São Gonçalo dos dias de hoje não distorce muito da freguesia que conheci há mais de 40 anos. Excluindo o crescimento das edificações, tudo o resto está praticamente igual. Incomoda-me saber que em pouco mais de quatro anos o número de pessoas que recebem cabazes tenha subido de 50 para 100, transmitindo a ideia de freguesia pobre e assistencialista.
O que não é verdade. Há uma juventude inconformada e melhor preparada que ninguém a convida para nada. Há pessoas da freguesia que são quadros bem qualificados da Região. Empresários de sucesso que são referência regional. Gente anónima com vontade de realizar. Mas ninguém os convida para coisa alguma. Incomoda-me não haver nenhum esforço para aglutinar estas pessoas num Fórum de São Gonçalo. É preciso aproveitar o saber, conhecimento e notoriedade desta gente para reflexões sobre o presente e o futuro da freguesia e da Madeira. Incomoda-me não ver um golpe de asa, um rasgo de lucidez, uma vontade de fazer diferente e melhor. Todos os dias o mesmo conformismo. Não acontece nada. Nada mais do que a gestão corrente e diária. Incomoda-me o populismo, o facilitismo e o dar tudo sem nada se exigir, retirando espaço à racionalidade e ao bom senso e contribuindo para uma sociedade amorfa e sem pensamento sobre questões coletivas fundamentais.
Se há mais de 40 anos a minha ligação à freguesia de São Gonçalo foi puramente sentimental, esse sentimento, que há de perdurar para todo o sempre, tem vindo a ser fortalecido ao longo dos anos pela racionalidade e pelo dever que tenho de trabalhar pelo colectivo e zelar pelo futuro dos meus filhos. Espero, sinceramente, que as cores deslavadas e os dias sombrios não persigam a felicidade que desejo para eles e para todos os que habitam em São Gonçalo. O meu desassossego não consentirá!