Susana Fernandes
Susana Fernandes
Quando estou fechada entre quatro paredes, a tinta da caneta demora mais tempo a ser transportada para o papel. Bloqueio.
Falta qualquer coisa. Fico a remoer os pensamentos, a olhar as paredes que estão mudas, a olhar para dentro de mim e há silêncio. Custa mais. Assim custa mesmo mais.
Mas é quando fecho os olhos e vejo-te ali, estendido a meus pés. Num azul imenso que se prolonga até à linha do horizonte.
E estou sentada no cimo das escadas. Sim, no degrau cimeiro das escadas na nossa casa em São Roque, onde o meu olhar te envolve. Apesar do mar estar a uns quilómetros abaixo e ter a cidade entre nós, sinto-o em mim.
O mar faz parte de mim, desde que me lembro de existir. E aquela linha também. Nunca percebi (nem tentei perceber), se era quando a linha se definia mais que os meus sonhos a ultrapassavam ou se paralisavam no receio do desconhecido.
O que sei é que quando a coragem o permitia, nos dias em que sentia o cheiro da maresia, a minha imaginação dava um passo de gigante.
Atrevia-me.
A freguesia que eu adorava era, nesses dias, pequena demais. Sufocava-me. E o desejo de ir além sobreponha-se enchendo o meu peito de ar, transformando meus pés em asas e os meus braços voavam para abraçar o mundo lá fora. O desconhecido.
Sim, nessa altura o mundo além da linha era mesmo uma completa incógnita.
O pouco que nos chegava e que nos era dado a conhecer, era através de alguns familiares emigrantes que cá vinham de férias, de visita à sua terra natal, e nos contavam o que existia por outras terras.
Os meus olhos brilhavam pela emoção da viagem além daquela linha do horizonte. Onde tudo era possível. Não sabia bem o quê, mas sentia que sim, que era possível. O mundo era enorme e nele cabiam mais do que somente a família, mais do que os vizinhos, mais do que os habitantes de São Roque.
E existiam outras cores! Não das flores. Os nossos jardins já eram vestidos de mil e uma cores.
Mas as cores das outras pessoas. Como aquelas que tinha visto numa fotografia que o cunhado mais velho trouxe de Angola, lá longe, de muito longe.
Eles eram escuros. E ele era branco. Eram crianças negras que o rodeavam e ele disse serem dele. Chorei! Chorei baba e ranho. Não podia ser verdade. Ele era meu e eu era dele. Não aquelas crianças de uma cor diferente que eu não conhecia. Éramos brancos. Secretamente desejei que ele nunca mais passasse além daquela linha do horizonte. Tive ciúmes do outro lado da linha e tive ciúmes daquelas crianças que abraçavam o meu cunhado, que era meu e não deles.
Mas também secretamente, a curiosidade do mundo fora da minha freguesia, crescia na minha mente.
Aquele mar que todos os dias religiosamente olhava, ao acordar e ao deitar (continua a ser a primeira coisa que faço após acordar, agora de uma outra freguesia), levava-me em viagens desconhecidas mas aliciantes. Misteriosas mas inebriantes. Viagens que alimentavam a mente de uma criança e depois adolescente e jovem. A necessidade de saber mais, conhecer mais, descobrir mais, era alimentada todos os dias.
Aquela linha que nos aprisionava na nossa casa, na nossa ilha, era também a que dava asas aos sonhos e acalentava a coragem e a promessa de que quando pudesse meteria os pés na água salgada do imenso mar azul e em passos largos iria atravessar o mar e colocar o pé do outro lado da linha do horizonte.
Iria descobrir o mundo desconhecido, que ali nos limites da freguesia de São Roque, só o conseguia imaginar.