Susana Fernandes
Susana Fernandes
Já viajámos juntos por vários sítios e partilhámos muitas aventuras vividas em São Roque.
Voltámos àquele tempo. Ao tempo em que éramos felizes com as coisas simples. Em que o mais simples era tudo. Em que cada instante era intensamente vivido e guardado no coração e os momentos eram preciosamente vividos sem a correria de hoje em que atropelamos cada instante na sofreguidão de chegar ao seguinte. Sem sequer viver o atual.
Quero parar em cada um e em muitos desses instantes. E quero que venhas comigo. Se tu também quiseres.
Não penses duas vezes. Faz o que o instinto te disser. Não olhes o relógio. Larga o telemóvel. Esquece o que tinhas programado para agora e para logo depois. Revive os instantes que fazem a tua história.
A soma de todos aqueles instantes em que riste por nada ou choraste sem saber porquê, em que pulaste de alegria ou ficaste deitado no chão a contemplar o céu, em que gritaste porque simplesmente te apeteceu, em que estar sentado à mesa com toda a família era um momento mágico, em que andar descalço afinal até era bom, principalmente saltar nas poças de água e lama e ficar todo respingado. Cada instante de cada sonante gargalhada…
São esses instantes que fizeram de ti o que és. Que construíram o teu passado e o presente que és. Que definirá o ser humano que serás amanhã.
Nesta viagem recordo os instantes em que subimos o caminho de São Roque, aquele caminho que vai do “Muro da Coelha” à Igreja ou ao Encontro onde o horário subia e descia, e vários instantes aconteciam. Estavam guardados algures na minha memória e provavelmente na tua também…
Ali mesmo ao virar a esquina na Rua João Abel de Freitas e começar a subida, lembro perfeitamente de estar dentro do horário que nos levava para casa e, enquanto este estava parado na primeira paragem, esticava bem o pescoço para tentar ver o que era aquele espaço do lado direito. Havia frondosas árvores que não nos deixavam ver para lá delas. Dependendo da estação e de ter muitas ou poucas folhas ainda se vislumbravam as telhas de um casarão, que já tinham sido vermelhas, mas que com o tempo o seu brilho esmorecia. Parecia que era uma quinta, grande, muito grande. Aliás enorme. Enorme como os meus olhos ao tentar vislumbrar mais. Fazia-nos sonhar como seria trepar aquelas grandiosas árvores, ter todo aquele espaço para correr, brincar às escondidas, perseguir o cão ou o gato, até mesmo as galinhas e ainda imaginar como seria a vida dentro do tal casarão que só se via a telha envelhecida.
Era uma quinta. A quinta que hoje pertence à Universidade da Madeira e onde finalmente entrei poucos anos atrás, para levar o meu filho a uma festa de aniversário. O casarão está desmoronado, as árvores sofreram com o tempo, com os incêndios e com as doenças da longevidade ou com a mão humana. Agora, mesmo de fora conseguimos ver o que está dentro. A magia de somente imaginar o que seria, desapareceu, mas o espaço transporta-nos para esses instantes de fascínio.
Mal o horário arrancava, expelia o fumo negro pelo cano escape no esforço da subida e deixava mais uma camada de preto na parede caiada há muito de branco, mas agora enegrecida. O nosso pensamento concentrava-se noutros pormenores da subida. Num ritmo lento apreciávamos os jardins escondidos pelos muros, quando fazíamos o caminho a pé, e descobríamos mais um pouco das belezas de cada casa, fazenda, árvores e flores. Sim, íamos a olhar a paisagem, os nossos olhos percorriam cada cantinho que fosse diferente enquanto continuávamos na galhofa com os colegas, amigos e vizinhos.
Muitos já ficavam ali na zona do Chão do Carlinhos. Antes disso, passámos pela Capela da Conceição, lembras-te? Uma Capela pequena em tamanho, mas enorme na sua beleza, ali encravada na curva entre as casas. Muito provavelmente também só viste o seu exterior, tal como a quinta mais abaixo, que não mostra muitos pormenores que façam ficar a contemplar por muito tempo, mas se entrares lá dentro vais apreciar toda a sua beleza e sentir o calor e o carinhoso abraço de Nossa Senhora da Conceição. Tens sempre a hipótese de lá voltar e em dezembro, no dia 8 é o dia em que se celebra a Festa da Imaculada Conceição. A tradição e a devoção permanecem.
Sempre achei estranho e ficava arrepiada quando o horário chegava ao Chão do Carlinhos. Havia homens, mulheres e crianças que se sentavam no degrau da entrada de casa, com os pés no caminho e eu encolhia-me para que os pneus não passassem por cima dos seus pés. Da venda, ali mesmo no fim da inclinação, apareciam homens que tinham ido beber o seu vinho seco. Alguns pareciam que eram engolidos pelo horário. E eu ainda me espremia mais no cantinho da bancada. Era bom que não viessem carros de cima. Ao longo do tempo foi crescendo o número de carros e ali havia sempre uma paragem maior e forçada. Carros para trás, para a frente, até que o horário, depois de deixar grande parte dos passageiros, começava então a subir a ladeira.
Dizíamos até amanhã a muitos dos vizinhos e continuávamos. De um lado e outro havia várias casas, mas não apartamentos. Casas em que a porta de entrada era mesmo em cima do caminho. Muitas não tinham quintais na frente, como as que vínhamos a apreciar desde o Muro da Coelha. Esta era mais uma das particularidades deste pedacinho do caminho. Tinha também alguns becos por onde desapareciam alguns dos que saiam do horário. E era ali que ela, uma das amigas que subia e descia no horário e que fazia parte do nosso grupo de jovens, da catequese, do coro, de tudo em que participávamos na Igreja de São Roque ou na Capela da Conceição.
Mas, hoje ela já não sai nessa paragem. E não é porque se mudou para outro local quando construiu a sua família. Não sai nessa, nem noutras. Este instante é-me muito importante. Aquele em que recordo o seu sorriso, a sua serenidade, a sua bondade, o seu até amanhã.
Somos instantes. Ela sorria e o instante passou rápido. Demasiado rápido. E a paragem dela, desde há um ano, é somente nos corações de quem a conheceu e partilhou muitos instantes com ela.
Continuando a subida há a registar a escola do moinho. Sim, havia ali uma escola de 1º ciclo e o rebuliço todo que envolve qualquer escola. Vinham muitas crianças para lá e o som das gargalhadas e brincadeiras nos intervalos era bem audível. Fui lá fazer um exame pelo menos. Havia muitas escolas, havia muitas crianças. Havia barulho e crianças e adolescentes no horário.
Passamos também pelo moinho. Um moinho de água que ali funcionava e deixava as paredes brancas da farinha que dispersava no ar. A levada que trazia a água para o moinho atravessava o caminho um pouco acima. E o horário passava por baixo desta. O moinho também já se extinguiu, mas as recordações deste não. Nem a peripécia do meu irmão que andou uns metros dentro da tal levada. Havia partes do seu percurso que estava destapada e na maioria tinha pedras grandes que a cobriam, e o mano caiu num desses espaços e foi tirado noutro uns metros à frente. Penso que a mãe só veio a saber mais tarde, ou então ele não escapou do vime nesse dia.
E chegamos à minha paragem.
Hoje ficamos nesta, aquela onde eu saía. Em frente à nossa porta de casa e também da minha escola primária. A escola da Cruz. Ainda ia a casa almoçar e depois para a escola. A Srª professora dizia sempre que sim à minha mãe, se viéssemos do Funchal. E eu podia ir almoçar e então ir para a escola.
É neste instante que ficamos hoje. Onde os instantes aconteciam e permaneciam em nós. Sem selfies, sem outros registos, senão aquele que ficou na minha memória e na tua.