Sónia Gonçalves
Sónia Gonçalves
Meia-noite. Lua cheia. Noite escura de Inverno no alto do Jardim da Serra, embora os postes de luz e a claridade da lua melhorem o ambiente. Um silêncio ensurdecedor faz-me olhar para o relógio e, de súbito, o meu coração palpita muito forte: estou a passar numa “cruz de caminho” e todas as histórias e lendas que ouvira sobre feiticeiras são reavivadas num ápice. Sinto os pés a tremer e repito vezes sem fim: «é tudo mentira». Um gato aparece do nada e fico petrificada. Acelero o passo.
Ando tão rápido que chego a casa a correr. Sem fôlego. Parecia mesmo que feiticeiras, bruxas e animais endiabrados me perseguiam, tal foi a velocidade que empreendi. Fecho tudo a sete chaves, mas não sem antes acender todas as luzes e ter, inclusive, rezado. O medo era tanto que até prometi começar a ir a missa todos os dias. Já se passaram mais de vinte anos e ainda não cumpri a promessa…
Lendas e mitos que não eram exclusivos da minha terra. Contavam-se de geração em geração nalgumas famílias madeirenses, marcando de alguma forma a infância de algumas crianças e fazendo-as ter uma adolescência cautelosa. Com o evoluir da minha aprendizagem, estas crenças foram-se desmistificando e, embora no fundo não acreditasse realmente nelas, cada vez mais ia tendo a certeza absoluta de que não eram mais do que crenças populares.
Os meus antepassados contavam-nas com tanta convicção que era difícil não acreditar que tinham um fundo de verdade. Vizinhos, familiares e amigos relatavam-nas com um toque de mistério que nos despertava curiosidade. Todos temos, ou pelo menos já ouvimos, uma história sobrenatural que nos deixou incrédulos. Dizia que não acreditava em feiticeiras, mas na hora da verdade quase que lhes ganhara “respeito”. Ou medo. Muito provavelmente medo. Aligeirando o assunto, muitas vezes evocava com humor este famoso provérbio espanhol: “Yo no creo en brujas, pero de que vuelan, vuelan”.
Foram tantas as histórias…
As feiticeiras nem sempre surgiam de preto. Às vezes eram pessoas normais que faziam a sua vida da forma mais corriqueira possível. Mas tinham poderes. Voavam à noite e apareciam normalmente às doze badaladas, preferencialmente em “cruzes de caminho”, ou seja, em cruzamentos de caminhos, estradas ou ruas. Às vezes, numa altura em que andar de carro era um luxo, eram vistas na cidade (Funchal) e algumas até em países diferentes. Mas horas depois estariam já nas suas casas. Falavam e interagiam com homens que caminhavam durante a noite em estradas sem luz. Estes iam a pé, com cestos cheios de frutas e legumes que vendiam na “cidade”, e supostamente eram interceptados por aqueles seres, que muitas vezes lhes pregavam “partidas”, como vedar a passagem ou pedir colo. Talvez só queriam chamar a atenção. Os que as viam, não podiam revelar o seu segredo, sob pena de um grande castigo, como a morte.
O seu “dom” ou “mando” era passado antes de morrer, pelo que o conselho que os entendidos deixavam era que crianças e outros inocentes se afastassem de idosas que oferecessem alguma coisa de mão fechada, dizendo «pega». Para não dar continuidade ao legado, os poderes poderiam ser queimados na palha de uma vassoura. O fogo seria colorido, pois supostamente os poderes estavam a ser queimados.
Nos berços das crianças, era comum haver tesouras abertas para afastar o apetite voraz das feiticeiras, que supostamente podiam sugar o sangue dos ‘anjinhos’ indefesos. Mas isto até ao baptismo. Com o sacramento, estas ficavam protegidas.
Para afastá-las, o truque era ter atrás da porta uma vassoura ao contrário. Mas, se a feiticeira entrasse e o utensílio fosse colocado entretanto, ela poderia ficar retida até que a vassoura fosse retirada.
Se as roupas aparecessem cortadas, como se tivessem sido alvo de tesouradas, tudo era obra das bruxas…
Quando não havia iluminação pública, no meio da serra, qualquer luzinha causava alvoroço e o medo reinava. A hipótese mais provável era que as feiticeiras estavam reunidas para uma convenção qualquer.
Tudo muito esotérico, não faltando mesmo os gatos de olhos reluzentes que podiam ganhar formas humanas, transformando-se em feiticeiras.
De uma forma geral, estas são algumas das crenças que chegaram até mim. Contudo, como já referi, não são exclusivas do Jardim da Serra. Naquele lugar recôndito, ouvi-as muitas vezes e, por algum tempo, pensei mesmo que poderiam ter um fundo de verdade.
Muito antes de eu perceber isso, com o evoluir das tecnologias, como o aparecer da energia eléctrica, as pessoas já se iam apercebendo que algumas destas convicções não faziam muito sentido. Por outro lado, as mulheres começaram a entrar no activo laboral e foi restando menos tempo para indagações. Ainda assim, a temática desperta tanta curiosidade que consegue sempre, pelo seu misticismo, envolver interessados de várias idades, mesmo os mais cépticos.