Susana Fernandes
Susana Fernandes
Foram as saudades que a fizeram voltar.
Anos e anos fora da sua freguesia. A vida a levou para outro recanto da ilha. Mas foi a ausência das vivências da sua infância que a fizeram recuar. Recuar no tempo. Recuar até tudo o que a fez ser a mulher que hoje é.
E foi porque neste início de ano aconteceram coisas que a fez perceber mais intensamente que a vida não retorna. Que a vida é o momento. Que a vida não se controla. Que o que tens hoje, não é garantia para depois, para o amanhã. Nem para o momento seguinte, sequer.
Foi também a partida. A despedida. A perceção de que, se os outros vão embora, tu também irás. Quando. Não sei, não sabes, ninguém sabe.
A vida é o momento. Mas hoje escolhi viver esses momentos. Momentos dessa vida que não retorna. Que não terei mais. Em que era criança e tinha a todos como garantido. O pai, a mãe, os irmãos. Os amigos, vizinhos e colegas.
A casa, o jardim, o caminho. O pátio da vizinha, o terraço do vizinho, o cão que não era meu, mas cuidava de mim como se eu fosse dele. Os gatos que nunca soube bem de quem eram, mas que encontrava escondidos debaixo da cama. E a fazenda ali do lado. Aquela onde nos deitávamos à sombra da parreira ou da enorme pereira. Onde os frutos que caíam na terra já eram nossos. E se a mãe não visse, também os que amadureciam na árvore seriam igualmente nossos, mesmo sem cair ao chão. Afinal o vizinho não os comia. Deixava apodrecer nas árvores e isso para nós é que era pecado.
A vida a levou para outro recanto, onde conheceu outras coisas. Onde viveu e vive outros momentos. Momentos diferentes. Onde muitas vezes se senta à varanda a olhar o mar. O mesmo mar que apreciava sentada lá no último degrau das escadas. Um hábito que vem de criança. De lá não via bem as Desertas. Daqui ela considera as Desertas o seu jardim. Mas nunca lá foi. Por isso só pode imaginar. Então volta ao degrau em São Roque e deixa que a sua mente vagueie nessas recordações, noutros momentos.
Porque nessa viagem a avó estava lá. A mãe estava lá. O pai também. E tios e vizinhos, até primos. Estavam todos e esses todos eram garantia. Nunca ela, na sua ingénua infância, imaginou que um dia eles já não estariam aqui.
Está presente o sorriso caloroso da avó velhinha. A avó do Galeão. Aquela que íamos, religiosamente, todos os domingos, visitar. Era como a missa. Sagrada. Para a ver, subíamos o caminho do Galeão com alegria. Não a tínhamos durante a semana. Nem os seus discretos beijos e abraços, com o seu jeito carinhoso. O seu sorriso sempre pronto que não desaparecia nem quando, no Natal, tirávamos o trigo dos cântaros da sua lapinha. Pacientemente ela dizia para não fazermos aquilo, mas não me lembro dela brigar, gritar connosco, se zangar ou sequer fazer má cara. Oferecia as broas da Festa que comíamos com prazer.
Tinha o terreiro cheio de cântaros, de flores bonitas, brilhantes, alegres e sorridentes como ela. E já velhinha, ali por volta dos 90 anos, parecia imortal. Encontrávamo-la de cócoras, a tratar desses cântaros, a tirar as ervinhas do meio das pedras do terreiro, de vassoura a limpar os matos. E no Natal, mais precisamente na 1ª oitava era nesse terreiro que a família toda se espalhava. Tios, tias, primos, primas. Muitos. Sim eram mesmo muitos. A casa era pequena, ou melhor pequeníssima, mas cabiam todos ali. Uns, os homens principalmente, jogavam à bisca na mesa da cozinha enquanto que, na lareira ao lado, as panelas de canja feitas com as galinhas caseiras, iam cozendo lentamente. O cheiro espalhava-se no ar. As gargalhadas misturavam-se. E ali encostadas à parede de pedra enegrecida pelo fumo da lenha ardida, estavam as sacas com os papos-secos para fazer as sandes com a carne das galinhas. Uma saca não dava. Eu disse que éramos muitos mesmo. Mas todos cabiam no seu coração paciente e pacificador. Geria tudo com a sabedoria da vida e transmitia essa serenidade mesmo ao mais rebelde de nós.
Como esse dia era tão especial. Especial, porque estávamos em família. A família é que fazia o momento.
Tal como eram especiais os jantares dos sábados lá na nossa casa. Também a mãe, depois de uma vida a criar os seus 11 filhos, continuava a fazer o jantar para todos, aos sábados. Os que ainda viviam em casa, os que já tinham casado, as noras e genros, os filhos que eles tiveram ou que vinham a caminho. Nem preciso falar dos maravilhosos filetes de espada que todos diziam ser os melhores do mundo. Confesso que ainda não percebi como é que ela fritava aqueles filetes todos para tantos. Porque sim, também éramos muitos. Nem os bifes de atum. Mas o trabalho era feito com alegria. Alegria de ter a família em casa. Porque mesmo que fosse o café de cevada misturado com o café do bom, e umas fatias do pão preto ainda quentinho acabado de vir da padaria do encontro, com manteiga, todos se deliciavam. Começando pelos cunhados mais velhos. Até esse café e esse pão, era tido como o melhor do mundo.
E afinal qual o condimento principal para tudo saber tão bem. Para que fossem e continuem a ser momentos tão especiais. Simplesmente a família reunida e unida. Esse era o elemento fundamental que sempre os fez sorrir e receber a todos de braços abertos. Isso sempre foi o que os pais mais gostavam de ter. A família.
Todos juntos, conversas à volta da mesa, gargalhadas e discussões, gritos de crianças, sorrisos do pai e da mãe, porque estávamos ali, todos juntos.
Hoje são estes momentos que vos deixo. Em São Roque, momentos especiais.