Paulo Ladeira
Paulo Ladeira
Neste primeiro texto sobre a freguesia da Fajã da Ovelha, para o Diário das Freguesias, decidimos debruçar-nos sobre o brasão da freguesia, nomeadamente dois elementos representados no escudo e que foram de grande importância para a freguesia e para a Madeira.
Na Madeira, desde os primeiros tempos do povoamento, utilizaram-se dois produtos, um de origem animal e outro de origem vegetal, respetivamente a lã de ovelha e o linho, que foram dos mais utilizados na tecelagem pela população, sobretudo a rural, de menor recursos económicos e que se dedicava na freguesia, maioritariamente, à criação de gado e ao cultivo das terras.
A Fajã da Ovelha não era exceção, antes pelo contrário, era uma das freguesias onde estes dois produtos marcavam uma grande presença. Não é por acaso que se chama Fajã da Ovelha, fruto da presença deste animal nas suas encostas desde os primeiros tempos. Tudo o que os animais forneciam era aproveitado, desde a carne, o leite, a força motriz, o estrume, e no caso do gado ovino a lã.
O Tenente Coronel Paulo Dias de Almeida na sua Descrição da Ilha da Madeira, em 1817, referia que a zona oeste da Madeira tinha os povos menos dependentes da cidade e que o seu modo de vestuário era diferente da zona leste “pois tudo são tecidos por eles” e reportando-se aos terrenos dos Prazeres, Maloeira e Raposeira mencionava que aqui “o vestuário desta gente é todo tecido de lã por eles e não se afastam daqueles trajes”.
A lã de ovelha, branca, acastanhada ou preta era misturada com linho (da mesma cor: marafuz, de cores diferentes: seriguilha) e era usada na confeção de calças, gibões, jaleques, coletes, japonas (jaquetão curto), barretes de orelhas, saias, tapetes e cobertores. O padre Eduardo Pereira, no livro Ilhas de Zargo (vol. II, edição de 1989, p. 556), refere que o barrete de orelhas era comum a toda a ilha da Madeira, mas na zona oeste, nomeadamente nas freguesias dos Prazeres, Fajã da Ovelha e Ponta do Pargo, a primitiva carapuça ou solidéu de tecido azul modificou-se para o apêndice em rabo de rato reduzido para metade e contendo um pompom na extremidade. “Na Fajã da Ovelha, Faial e São Roque do Faial o fabrico de barretes constituía uma indústria caseira privativa dos homens destas regiões”. O dito autor, em meados do séc. XX, referia que “o vilão das povoações do oeste não dispensa a camisa de linho e estopa pragueada e com mangas de fole, o colete, o jaleco e as calças de seriguilha são vulgares em Santana, Santo da Serra, Fajã da Ovelha e Ponta do Pargo” (p. 557). No citado livro encontramos ainda uma fotografia de J. P. Ferreira de uma “saia escura de seriguilha listada de veios horizontais coloridos como é de uso tradicional em freguesias do Oeste” (p. 566). Para Eduardo Pereira, na primeira metade do séc. XX, na Fajã da Ovelha, considerada o “centro da fiação regional”, a saia usual é de “seriguilha, cor de café, orlada de três listas escuras morrendo ascendentemente na largura e na cor, ou toda encarnada listada de escuro às barras horizontais” (p. 566).
Segundo Carlos Santos, no livro o Traje Regional da Madeira (1952, p. 29), na Fajã da Ovelha “as mulheres usavam saia cinzenta com três barras horizontais, de cores, colete vermelho, bordado, capa azul, de bicos, lenço de alcobaça, vermelho e bota chã. Nos sítios da Maloeira, Raposeira e Lombada dos Cedros, os homens usavam mais frequentemente o traje serrano”. Nesta data de 1952 ainda se via o gibão de seriguilha preto com mangas que foi decaindo do uso ao longo de meados do séc. XX em troca “da «sueira», corruptela de sweater, fabricado a lã da terra. Foi uma professora oficial, natural dos Açores, quem introduziu o tricot entre a família rural da Fajã da Ovelha. (…) É na costa oeste onde se encontram os trajes mais garridos”, predominando as cores naturais da lã e do linho.
Em 1931, um autor denominado de “J.C.”, num poema publicado no livro Quadras às Freguesias da Madeira, exaltava este tema escrevendo sobre a Fajã da Ovelha:
“Pascigo: retoiça a ovelha
À benta luz da manhã…
Um pastor além na quelha
Traz carapuça de lã.
Como a simpleza reluz!…
Nesta Fajã tudo brilha:
Jalecos de marafuz
As bragas de seriguilha.”
Por coincidência o padroeiro da primeira paróquia da freguesia, a de São João Batista, tem como atributo um cordeiro que simboliza Jesus Cristo, o Agnus Dei – Cordeiro de Deus, que João Batista anunciou com a expressão “Eis o Cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo”. Este atributo e duas flores de linho constituem os elementos que figuram no escudo do brasão da freguesia da Fajã da Ovelha, ou seja dois elementos de elevado significado para a freguesia. O brasão da freguesia, aprovado sob proposta da Junta de Freguesia, em sessão de Assembleia de Freguesia, efetuada a 23 de Janeiro de 2001, consiste num “Escudo azul, Agnus Dei prata, nimbado de ouro, sustentando com a pata uma vara crucífera de negro, com lábaro de prata carregado de cruz firmada de vermelho; em chefe, duas flores de linho de prata, botoadas do campo. Coroa mural de prata de três torres. Listel branco, com legenda negro: Fajã da Ovelha – Calheta“.
Relativamente à cultura do linho vejamos alguns dados que revelam a importância que o linho teve na Fajã da Ovelha. Otília Fontoura, no livro sobre as Clarissas na Madeira (2000, p. 337), refere que o Convento das Mercês, no Funchal, recebeu ao longo do séc. XVIII remessas de linho da Fajã da Ovelha, ofertadas pelo vigário desta localidade, por exemplo em 1737, 1773, 1784, 1785 e 1786, respetivamente a quantidade de 20, 45, 30, 33 e 28 libras em linho. O linho destinava-se à confeção da roupa das religiosas, paramentos litúrgicos da sua instituição e de outras capelas e igrejas da Diocese do Funchal.
Um aspeto curioso é a existência do apelido de família Fiandeiro que surgiu na freguesia em meados do séc. XVIII e que persiste nos nossos dias, ou seja um reflexo da atividade da fiação na freguesia. Manuel Rodrigues Fiandeiro e Ana Rodrigues, moradores no sítio da Maloeira, eram os pais de Manuel Rodrigues que casou na igreja de São João Batista, na Fajã da Ovelha, a 2 de dezembro de 1756 com Maria Rodrigues, estes últimos denominados com a alcunha “o fiandeiro” e “Ferra”, em agosto de 1800, aquando do casamento do filho António (in: Arquivo e Biblioteca da Madeira, Registos Paroquiais, Fajã da Ovelha, Casamentos, L.º 1093, fl. 122; L.º 1094, fl. 137 v.º).
A cultura do linho, com preferência pelos terrenos húmidos, encontrou na freguesia da Fajã da Ovelha um clima favorável ao seu crescimento, assim como um pouco por toda a Madeira nas zonas de cota intermédia. O linho, semeado em março, até estar disponível em tecido/teia passava por um demorado e minucioso processo: o cultivo, a apanha, a ripagem (separar a semente da planta), a maceração ou curtimenta (separação da resina da fibra) depois de colocado em molhos através da alagação em águas frias e límpidas existentes pelas ribeiras ou poços construídos para o efeito, como pode ser contemplado um exemplar no Caminho Velho/Caminho Chão, mais especificamente situado na Ribeira Chã, entre a Lombada dos Cedros e a Raposeira do Serrado. Seguia-se o secar, maçar, gramar, tasquinhar, assedar (separar a casca das fibras e ordená-las), fiar (transformar as fibras em fios ordenados num fuso), sarilhar (ordenar os fios em meadas), branquear (com cinza e cozidas em água), dobar (passar os fios para novelos) e finalmente a tecelagem nos teares, cruzando fios transversais com uma lançadeira nos fios da urdidura (fios longitudinais) e obter-se as teias com cerca de 60/65 cm de largura e uns largos metros de comprido para depois se confecionar o vestuário.
Refira-se que as teias eram um dos principais elementos do dote que os pais faziam aquando do casamento de uma filha, pelo menos durante o séc. XIX e inícios do séc. XX. Com as teias de linho confecionavam-se camisas, blusas, calções, roupa interior, roupa de cama, mortalhas e toalhas. Com os fios de menor qualidade, denominados de estopa, também se faziam as peças atrás descritas, resultando em qualidade inferior, ou seja mais ásperas e grosseiras.
Com a manufatura destes dois produtos, a lã e o linho, era natural abundarem os teares pela freguesia. Num registo oficial realizado em 1863 refere-se a existência de 18 teares na Fajã da Ovelha, número que poderá ser maior e que terá aumentado durante a segunda metade do séc. XIX até à primeira metade do séc. XX, pois era comum a existência de um tear em muitas das habitações da vasta freguesia. Recordo-me, por exemplo, de uma grande parte das habitações do sítio da Maloeira ter um tear, situado na cozinha – o espaço comunitário da casa, no recanto junto à janela para permitir a luminosidade do ofício, e de ainda laborarem, não na tecelagem da lã ou linho, mas na confeção de tapetes de retalhos.
A confeção e utilização quotidiana de tecidos em linho foi caindo em desuso, de modo mais acentuado na década de 60 do séc. XX. Face à inutilização dos teares e ocupação de espaço na cozinha muitos foram desmantelados há cerca de 30/40 anos, restando ainda uns pouquíssimos exemplares montados, deste património artesanal, que chegaram até à atualidade em casas desabitadas. Enquanto na Fajã da Ovelha estas atividades ainda eram mantidas por necessidade, mesmo no terceiro quartel do séc. XX, no Funchal, na primeira metade do século XX, já eram vistas como uma mostra de atividades tradicionais. Assim, nas Festas de Fim de Ano do Funchal, em 1936, um grupo de fiandeiras da Fajã da Ovelha deslocou-se à cidade e mostrou ao público o seu trabalho, os costumes tradicionais da ilha, uma “indústria deliciosamente primitiva, que vem passando de pais a filhos, através de gerações, sem acusar a influencia do progresso, o maior inimigo das indústrias domésticas” (Diário de Notícias do Funchal, 30-12-1936, p. 1). A abertura da Estrada da Viação Acelerada até à Ponta do Pargo (atual Estrada Regional 222), inaugurada em junho de 1941, possibilitou a ida de excursionistas até esta localidade, “que ainda mantém mais arreigadamente os usos e costumes antigos, os seus trajes tão pitorescos e uma vida cheia de bucolismo e beleza!” (Eco do Funchal, 14-09-1941, p. 1).
Na primeira metade do séc. XX a emigração, a indústria do bordado e os melhores acessos ao Funchal permitiram um maior contacto com outras realidades, a chegada de outros materiais como o algodão, uma maior venda de tecidos para as costureiras confecionarem roupa por medida e a venda de roupas prontas a vestir. Tudo isto contribuiu para a melhoria das condições de vida e para a diminuição deste legado patrimonial da tecelagem na freguesia da Fajã da Ovelha.
Enquanto este(s) símbolo(s) da Fajã da Ovelha, estes materiais e o saber fazer de várias gerações não se perdem por completo na freguesia, era importante que privados e/ou instituições públicas, mesmo através de mecanismos de financiamento/ajuda, como acontece com outras culturas agrícolas, mantivessem vivos, em funcionamento nas habitações genuínas, esses teares originais que ainda se encontram na freguesia, e que assim se pudesse mostrar o processo completo da tecelagem desde o cultivo ao produto final, proporcionando algum rendimento, a fixação de pessoas e a vinda de mais visitantes, numa altura em que cada vez mais existe a cultura de um turismo de proximidade e se procura o que cada localidade tem de mais genuíno.