Paula Noite
Paula Noite
Na véspera, mal dormíamos. E manhã cedo, ao cantar do galo, saltávamos cama fora.
Os homens iam chegando pouco a pouco, conversando alto e atirando de uma só vez o “grogue” de aguardente, pela garganta abaixo; “bebiam para se aquecerem”. E corda dobrada ao ombro, iam para o chiqueiro para tirar o porco. Nós, encolhidos no frio da manhã, tiritando de frio e medo, mesmo assim, espreitávamos de olhos esbugalhados despertando ao som dos guinchos do animal.
Um deles, o Manel, alto, foice enfiada na correia e de faca pontiaguda, avançava dizendo “Então, abiquem-no já”. E o porco caía estendido, preso pelas mãos ásperas e gretadas dos homens. A mulher, franzina mas corajosa, avançava de lenço amarrado, com o alguidar na mão, o branco do sal a brilhar no fundo. E aparava o sangue que jorrava muito vermelho e abundantemente do pescoço do porco trespassado pela lâmina. Ia de passo miúdo, para a cozinha onde já aquecia a frigideira. E espalhava-se no ar o cheiro a sangue frito.
Os homens, sobre o porco, entre um cigarro e um copo de vinho, espalhavam a feiteira e a urze seca. E pegavam-lhe fogo. Olhávamos o animal, envolto em chamas e qual história de feitiços e bruxaria, o porco aparecia inchado, preto, duro. “Traz a água e um trapo”. E molhando o trapo na água fria, salpicavam-no. Elevava-se então um vapor esquisito, parecia fumo. E os homens em algazarra, avançavam de arco na mão, para raspar o ermo, entre um copo e um “dentinho” de sangue frito. E nós também raspávamos. Passado pouco tempo, ficava todo branquinho e era dependurado pelas patas traseiras, num ferro preso na trave da casa.
O mais experiente, de faca em punho, rasgava-o de cima a baixo, direito como se tivesse uma régua. E com mão de “mestre”, tiravam o “debulho”, para uma enorme banheira. Tarefa terminada, acendiam um cigarro bebiam mais um copo e à volta da mesa, com força atiravam as cartas, no jogo da bisca, gritando “corta, nã tens trunfo? Dá-lhe!”.
As mulheres, entretanto, carregando a enorme banheira, a transbordar no volume e no peso, desciam penosamente “o carreiro”, esbarrando nas canas “vieiras” e abrindo caminho até à ribeira. Uma cortava as tripas e outras com uma cana ou com um vime, viravam-nas e despregavam-nas, mergulhando-as na água saltitante e fresca. Estendiam-nas sobre a pedra mais próxima, raspando-as muito com uma faca, com cuidado, até ficarem “alvas”.
Em casa, outras mulheres preparavam o almoço: cortavam a “fressura” (fígado e pulmões) com vinho, alho, louro e pimenta. Ao lado uma panela com “semilhas” (batatas), batatas (batata doce) e inhame para acompanhar e pão caseiro. Almoçavam e enquanto os homens conversavam, as mulheres ferviam o “bucho” (estômago) e as tripas, com sal e limão. Depois, o bucho escondia todas as tripas lá dentro, bem salgadas, para depois fazer a sopa de moganga.
A tarde ia mingando e os homens preparavam-se então para “picar” o porco. Primeiro cortavam a cabeça e colocavam-na com jeito sobre a mesa. De orelhas espevitadas e olhos esbugalhados, parecia vigiar os homens que aos poucos o iam cortando em pedaços que empilhavam ao lado. Alguns deles eram levados pelas mulheres, para a cozinha, para fazer a “carne da noite”. Sentia-se no ar o cheiro da segurelha e do alho, misturado ao vinho, que nos abria o apetite.
Entretanto, marido e mulher, em sussurro, iam “destinando” os diferentes bocados de carne: para a família, para os vizinhos… Os outros eram salgados e arrumados cuidadosamente no salgueiro, para ao longo do ano ir “gastando”.
Finalmente a azáfama chegava ao fim. Reuniam-se à volta da mesa onde já fumegava a carne da noite, acompanhada de semilhas e pão de casa. E esta “função” reunia familiares e amigos, num espírito de entreajuda, partilha e convívio, que perdurava por toda a quadra natalícia.
Porque o Natal, ontem e hoje, chega sempre de mansinho, trazendo de volta as nossas tradições, o cheirinho a bolo e broas de mel, ao musgo fresco, à carne de vinho e alhos, assim como o calor aconchegante da família após a “Missa do Galo”.