Susana Fernandes
Susana Fernandes
Estávamos no meio da brincadeira, quando a mãe gritava, a plenos pulmões, pelo nosso nome. Não precisava repetir. Não chamava novamente. Não nos atrevíamos a fingir que não a ouvíamos.
Acho que em São Roque quase todos também ouviam.
Gritávamos como resposta: “Já vou” ao mesmo tempo que largávamos o brinquedo deixando-o num canto, deixávamos o jogo de futebol a meio (outro que entrasse no nosso lugar), ou abandonávamos a boneca que ficava por lá meio despida.
Não dizíamos: “Mas…” argumentando e tentando ganhar tempo para terminar o jogo do monopólio ou ver, quem ganhava hoje, o salto com 3 pedras no terreiro grande.
Ela não sabia bem onde estávamos. Mas sabia que estávamos. No terreiro, na fazenda, no caminho, ou no quintal de algum vizinho. Estávamos em São Roque e estávamos seguros. Era o suficiente para estar descansada a fazer as lidas da casa, até que fosse preciso chamar um de nós para alguma tarefa.
Não me perguntes: “Como é que então a ouvíamos, quando soava o nosso nome, se estávamos no meio da brincadeira?”
Nem questiones: “Porque é que ela gritava o nome se todos os vizinhos ouviam?”
E muito menos, nem te atrevas a pensar que a mãe era estúpida, por não estar antes a enviar mensagem ou ligar para o nosso telemóvel.
Felizmente não havia esse instrumento que nos silencia, que nos afasta mesmo quando estamos juntos, que impede conversas olhos nos olhos, que não nos permite ouvir o outro seja em sussurro ou a gritar.
Recordo com saudade a subida ao Galeão, nas tardes de domingo, para a visita à avó, aos tios e primos. Íamos quase no fim dessa íngreme ladeira e a voz da tia Adelina fazia-se ouvir: “Noeemiii…” O eco ressoava pelo vale. Sorríamos ao saber que a tia estava em casa e que as primas andavam por ali perto. Estávamos quase a chegar para conviver e brincar.
Se houvesse telemóveis, não haveria eco. Não haveria o som desta voz tão gravada no meu coração.
Nem a da tia a chamar pela prima, nem a da mãe a chamar por mim ou um dos irmãos, mesmo que fosse no tom em que percebíamos que quando chegássemos junto dela, a orelha ia ficar vermelha e a doer pelo puxão que seria dado. Não sabia qual, mas alguma asneira tinha feito.
Sim, o som era ouvido por muitos. As vozes eram conhecidas dos vizinhos. Todos já sabiam os nossos nomes. Também, todos, ficavam a saber se tínhamos mesmo feito asneira ou se era hora de acabar a brincadeira e fazer algum trabalho em casa.
Mas o nome ecoado pela freguesia e pelos vales era tão mais íntimo, tão mais próximo, tão mais personalizado que qualquer mensagem que hoje é enviada e imediatamente recebida.
Recebida, mas não respondida. Ou respondida para simplesmente despachar.
Naquela altura, na nossa infância e adolescência, ouvíamos e de imediato respondíamos.
Parece-me que não conhecíamos a conjunção: “Mas”, porque não nos atrevíamos a dizê-la.
Hoje mandamos mensagens por telemóvel, já depois de ter chamado várias vezes pelo filho ou filha que está no seu quarto. Ali, no quarto mesmo ao lado, dentro da mesma casa, com uma única parede a nos separar. Imaginamos ou convencemo-nos que estão seguros porque estão dentro de casa, porque não estão na estrada onde existe o perigo do trânsito caótico, ou nas ruas com companhias que não conhecemos e que podem ser reles influências.
Mas eles não ouvem a nossa voz. Estão com os fones nos ouvidos, agarrados ao computador e podemos gritar o seu nome várias vezes. Estão ocupados com vários “amigos” que podem ser do outro lado do mundo, com quem falam sem nunca olhar nos olhos, sem nunca saber se são a “Maria” ou o “José”, mas com quem discutem a tática do jogo. E gritamos novamente.
Os vizinhos todos até já ouviram. O som ecoou pelos apartamentos nos vários andares. E eles continuam a não escutar.
Não, o nome não ecoou pela freguesia e ninguém o conhece porque as paredes do edifício abafaram o som.
Não saem do quarto a correr para nos vir perguntar o que é, escutar o que dizemos e fazer o que pedimos. Há sempre um: “mas…”
E há a frieza da falta de comunicação, o gelo pelo diálogo não conseguido, a irritação pela falta de obediência e a sensação de que estamos juntos, mas distantes.
Não, nem sempre é assim. Mas sei que já sentiste esta sensação. Sei que por vezes sentes a mesma frustração. Sei que também querias gritar pelo seu nome e ouvir uma voz ofegante que correu para te responder e que se prontifica de imediato para te fazer o que pedires, ou simplesmente conversar.
Não os culpo. Se eles pudessem escolher será que também gostariam de ouvir o seu nome a ser chamado tão alto, que toda a freguesia ouvisse?
A culpa é nossa. Dos adultos. Fomos nós que deixamos que a tecnologia gritasse mais alto que a nossa voz. Fomos nós que fomos viver para apartamentos onde nos fechamos e nem conhecemos quem vive mesmo ao lado. Fomos nós que os proibimos de ir brincar para a rua, porque não sabemos se o vizinho é de confiança. Fomos nós que lhes comprámos o telemóvel, o computador, o iphone, o tablet, a outra televisão para o quarto…
E eles vivem no mundo que transformámos, na ilusão de estarmos a lhes dar o melhor.
O mundo, onde quase não há vozes a ecoar pelos vales.
O mundo, onde o seu nome não fica conhecido pela freguesia toda, mas em que existe alguém num recanto longínquo do planeta, que se diz amigo dele ou dela, sem ter a certeza do seu nome, sem nunca ter olhado seus olhos, sem nunca ter gritado o seu nome.