Ana Luísa Freitas
Ana Luísa Freitas
Por esta altura, cheirava a vime… era então uma criança viva, expressiva, curiosa, liberta que brincava na rua o dia e regressava a casa naquela hora crepuscular.
Calcorreava sítios e achadas, rebolava na erva até cansar, andava de bicicleta e patins, jogava à espadinha, à barra, às pedrinhas, à matança…trepava árvores, comia frutos frescos diversificados com doses insignificantes de agroquímicos. Brincava nos carros antigos do meu pai que já não funcionavam e fazia bolos de terra. Estes bolos e outras ‘iguarias’ do género, eram confecionados em casa de uma grande amiga e colega de escola, a Inês, a filha do Regedor. Uma amizade fossilizada, preservada no tempo. Nessa altura, também por força do hábito, ainda se tratava o Presidente de Junta de Freguesia, como senhor Regedor. Era assim que ouvia, dentro e fora de casa. As nossas moradias, muito próximas, nas imediações da igreja e dos paços do concelho, fazia com que andasse ali frequentemente à procura de brincadeira e diversão. No início da primavera, depois de um inverno frio e rigoroso, típico daquela região nortenha, tudo ganhava mais intensidade e cor. A passarada acordava e tanta fragância a mãe natureza exalava. As hortênsias azuladas e os muros compactos de bucho verde ladeavam as ruas e estradas.
Nesta altura, era atraída pelo cheiro característico do vime, do vime cozido na casa do regedor. Neste labor juntavam-se mulheres – reboliças e enérgicas – que descascavam vimes. Vimes previamente mergulhados e cozidos num caldeirão com água fervente- durante horas – para se tornarem mais flexíveis, fáceis de trabalhar. As hastes das plantas cozidas quando saiam do caldeiro eram malhadas na zona de corte (base), uma tarefa sempre destinada aos homens, e que facilitava o desprendimento da casca. As mulheres ficavam durante muito tempo com as mãos escurecidas, pretas, uma marca desta atividade.
Depois de cozidos, malhados, descascados, os vimes ficavam semanas expostos ao sol, e ganhavam um tom dourado devido à fervura a que foram sujeitos. As mulheres dos vimes – como se dizia – trabalhavam arduamente e cantavam, o dia inteiro. Eram incansáveis. Tinham geralmente lenços garridos na cabeça e ali sentadas puxavam cascas e cascas de vimes. Cascas que secavam ao sol dia após dia e formavam uma cama fofa e gigante. Era nessa cama fofa e com cheiro caraterístico que nós crianças saltávamos vezes sem conta, interlaçávamos aquelas fitas de vimeiro, cantávamos, soltávamos a nossa imaginação e criatividade.
A primavera e o cheiro a vimes – fazia-se sentir também nos sitos do Caminho Chão, Fonte da Pedra, Parlatório, Pico Tanoeiro entre outros da freguesia. Hoje, os jovens da terra não sabem o que descrevo. Este cheiro – desconhecido – não faz parte das suas memórias.
Os vimes depois de secos eram comercializados, geralmente para a Camacha, freguesia bem conhecida pela indústria deste produto e pela transformação habilidosa dos artesãos em malas, mesas, canapés, cestos de vindimas, carros de cestos…
Os vimeiros vingam nos solos ricos em água, e em Santana na proximidade de ribeiras e córregos há muitas áreas propícias à prática desta cultura. A técnica de poda – hoje – pode ser conhecida no Parque Temático da Madeira, onde fazem demonstrações interessantes desta prática agrícola. Aqui há também contacto com artesãos que transformam a matéria-prima em produtos decorativos e outros de utilidade quotidiana.
Em Santana, anualmente, repetia-se este ritual…os vimes passavam por estes tormentos, sempre que começava a primavera.