Mara de Sousa Freitas
Mara de Sousa Freitas
Procuramos, infinitamente, o sabor íntimo de cada coisa, de cada momento, de cada acontecimento. Buscamos o encontro perfeito na viagem pelo mundo, em aproximadamente 81 anos, para a sociedade atual, e neste «admirável mundo novo».
Gozamos de mais tempo, mais recursos económicos, e técnicos, mais conhecimento, mais e melhor saúde. O nosso planeta transformou-se numa aldeia global, onde tudo parece ser possível e estar acessível, para todos. As juras de vida eterna, de eterna juventude, de felicidade permanente, de melhoramento interminável das capacidades humanas. Tudo, como que por um golpe de magia, surge como uma oportunidade perfeita. A sociedade modificou-se, as nossas gentes ganharam poder, e autonomia, e a vida transformou-se numa hipotética resposta à vida boa, numa luta incessante por uma liberdade, ainda por interpretar.
Por outro lado, os sabores internos da nossa “aldeia” transformaram-se em lendas, aquelas narrativas maravilhosas que marcam e amplificam a história, e na sua alusão poética nos levam pela mão – de regresso a casa -, ainda que com a consciência de uma distância, por vezes irreparável, e a sensação de desalento para o caminho necessário. Aquele doce sabor que recorda o amargo do desacerto. Aquela sensação de aconchego que nos mostra o quanto desenraizados estamos. A multidão que reenvia a solidão. O ruído que suplica o silêncio da nossa aldeia. O sucesso que confessa, tantas vezes, o fracasso humano. Estamos cada vez mais velhos, mais sozinhos e com menos amor.
Mas a nossa sociedade progrediu, as nossas gentes aparecem, permanentemente, com um sorriso de felicidade. O sucesso é o denominador comum de todas as vidas. Distribuímos novas formas de afeto a cada instante: “banquetes de palavras”, beijos, abraços, amor em forma de corações (vermelhos, amarelos, azuis, …). Nunca estivemos tão «ligados» e, simultaneamente, tão desconectados. Nunca tivemos tantas ligações e nos encontrámos tão vazios.
As taxas de depressão e suicídio continuam a aumentar. O isolamento e a solidão ocupam páginas e páginas dos nossos jornais. Não conhecemos o vizinho do lado. Olhamos a alegria e o sofrimento do outro, sem ver. Ouvimos – com pesar -, as dificuldades do mundo sem escutar aqueles que estão ao nosso lado. A tolerância não inclui o respeito da aceitação, ou pelo tempo e ritmos individuais, ela reveste-se de um suportar pela necessidade de não poder dispensar e, sempre que prescindível, revela-se intolerância, intitulada de desadequação social. O “Bom dia!” e “Obrigado!” tornaram-se palavras de etiqueta.
Precisamos de revisitar as fontes de sabor da nossa aldeia. Este sabor íntimo das raízes de cada um de nós, que não é matéria da exterioridade, ele é -“como em todas as experiências que requerem um arte de ser, uma coisa em que nos tornamos[1]” -, uma forma de agir, uma forma de relação com o outro, com os outros e com o mundo. A afetividade transforma as sociedades e semeia a solidariedade, construindo pontes e diálogos plurais e intergeracionais assentes no respeito e na responsabilidade, pelas gerações atuais e vindouras.
Os vertiginosos sinais dos tempos, o conhecimento – e o poder por este conferido -, apenas encontram um sentido, na medida em que podem ser usados para influenciar positivamente a vida de todos e de cada um. Por isso, o verdadeiro salto civilizacional acontecerá na exata medida de uma sociedade, onde a justiça, a compaixão, a empatia e o amor possam ser os alicerces para a vida boa e para a liberdade, enquanto oportunidade de realizar o máximo dos valores da nossa vida.
Naquela tarde, a avó fazia malassadas, bolo do caco e assava batata-doce; a mãe tinha preparado as rosquilhas com a mesma massa, uma para cada filho, e mais algumas para quem chegasse – na aldeia era [é] assim, havia [há] sempre a mais para o vizinho. No Carnaval, a nossa aldeia sabe a malassadas regadas com mel de cana, bolo do caco, batata-doce assada, rosquilhas e abraços.
«Aquele abraço» que envolve quando – com as máscaras e a brincar ao Carnaval -, passeiam de casa em casa. Aquele abraço que deixa de ser o nosso abraço (os nossos braços), o abraço de quem nos abraça (os braços do outro), para ser uma nova realidade que acolhe na reciprocidade, no reconhecimento, na afetividade, no amor, «o nosso abraço». O abraço que faz brotar, naquele instante, um novo e admirável mundo, uma entidade singular que metamorfoseia dois mundos e os faz cientes da verdade última: «é tão bom que tu existas» – e nesse abraço -, o mundo pula e avança.
– Ao que sabe a nossa aldeia, avó? – Perguntou a menina.
– A nossa aldeia sabe a cada bocadinho de ti, cada bocadinho da nossa família, cada cheiro da nossa casa, cada gesto dos nossos amigos, cada cheiro, cada som, cada cor…. Esse é o sabor da nossa aldeia…
– Avó, mas posso saborear sempre que eu precisar?
– Claro! Respondeu a avó. O sabor da nossa aldeia será, sempre, a oportunidade de voltares a casa e poderás voltar a casa sempre, onde e quando quiseres.
– Avó! Então poderei estar sempre contigo, com a nossa família e amigos – balbuciou a menina, cheia de júbilo.
– Filha, nunca esqueças o que é importante. Onde quer que estejas e o que quer que faças, ao longo de toda a tua vida, escuta, com atenção, o que permanece ao final do dia, depois de toda a tua agitação, de todos os teus projetos, de todos os teus sonhos e sucessos. Ouve e dá atenção a tudo aquilo que aguarda, serenamente, pelo silêncio para revelar-se. Dá tempo e espaço àquilo que nunca pensaste ou reparaste. Depois, com toda a serenidade com que esperamos este delicioso bolo do caco – estas malassadas que tanto adoras -, repara naquilo que perdura dentro de ti, quando «o silêncio se avizinha[2]». Assim, nunca estarás só!
– A menina e a avó abraçaram-se…
[1] José Tolentino Mendonça, em «A mística do instante, o tempo e a promessa».
[2] Virgílio Ferreira