Susana Fernandes
Susana Fernandes
Hoje não resisti à tentação. Deixei o conforto do degrau das escadas lá de casa, aquele onde diariamente ficava a olhar o mar.
Desci o caminho que normalmente me levava à escola ou à “caixa” para uma consulta de rotina, com a mãe. Acho que nem dei pelas pedras da calçada, pois corri pela ladeira da Conceição abaixo, tão rápido que parecia não ter chão. Era como se tivesse receio de recuar.
Mas hoje não fiquei pelas ruas do Funchal.
Atrevi-me.
Pisei a linha que separa a segurança da nossa ilha, com as ondas do mar que a beijam.
Fui. Atravessei. E fiquei desse lado.
Do lado de lá.
Agora vejo-te daqui do mar, São Roque. No baloiçar do barco, sob o vaivém das ondas, com o cheiro da maresia, olho para ti, daqui de baixo, de um outro ponto de vista.
A sensação é completamente diferente. A emoção também. A visão esplêndida.
Os teus cumes outrora tão verdes estão pintalgados do madrugador dourado pelo nascer do sol que te banham. Quase que os vejo verdes como eram. Luxuriantes e braços protetores de toda a freguesia. As poucas árvores que sobreviveram ao tempo, aos temporais, aos incêndios, à galvanização dos apartamentos serra acima, ainda conseguem permitir que a minha mente te observe assim, com os picos verdes como o colorido de antigamente.
O mar leva-me. O seu balanço permite viajar no tempo. Deixei o medo e os fantasmas ficarem aí, sentados no degrau, onde tantas vezes sonhava como seria transpor a margem da segurança da ilha, para os mistérios que o mar escondia.
As casas vão ficando pequeninas. A torre da igreja ainda sobressai por entre o casario, mas aos poucos o seu tamanho vai reduzindo. Quase não distingo as ruas que serpenteiam a freguesia. Também elas se perdem na distância do olhar.
É uma freguesia como as outras que a rodeiam e que a cada avanço do barco vão, também elas, se esvanecendo, perdendo os pormenores que as distinguiam umas das outras e ficando o vislumbre dos contornos das montanhas, da sombra do casario que sobe o caminho que desci.
Estar hoje aqui, e te olhar de longe já nada tem de misterioso nem a recear.
Mas estar aqui hoje, faz-me tentar perceber o que outros, muitos outros, filhos da freguesia sentiram, quando há tantos anos atrás, pegaram na trouxa ou na mala de cartão, desceram a mesma ladeira e transpuseram a linha, indo para o lado de lá.
Lágrimas engolidas para não revelar a dor da despedida. Ansiedade e receio instalados na sua alma.
Os seus olhos a varrerem tudo o que poderiam guardar como recordação. A face e o sorriso da sua esposa, os olhos brilhantes dos filhos agarrados às suas calças, a tristeza estampada no rosto da mãe que sentia estar a vê-lo pela última vez.
Deveria ser um esforço hercúleo.
Deixavam para trás a família, a casinha, a fazenda, os caminhos e recantos que até aqui conheciam como a palma da sua mão, para partir ao desconhecido. A cidade com os carros de bois, as barcaças de onde mergulhavam os garotos para ir ao fundo do mar buscar a moeda que os estrangeiros jogavam, debruçados nos imponentes barcos que ali no largo atracavam.
Esses conheciam o mundo. Vinham de lá.
Eles iam no sentido contrário e não conheciam o mundo para lá da ilha.
Iam de coração choroso e abraçados a uma esperança no futuro risonho que iria abafar a angústia da separação, o medo de partir e seguir pelo mar fora.
Naquele tempo a imagem que tinham do que lhes esperava, além da linha do horizonte, era aquela que alguns familiares e amigos, que já antes corajosamente se tinham aventurado, descreviam em parcas palavras nas cartas que desse outro mundo enviavam.
Não havia Google, não havia fotos do momento, nem diretos, selfies ou tudo o que um simples telemóvel hoje consegue transmitir em tempo real.
Era uma viagem no escuro sem saber bem a quê que iam. Sem regresso marcado.
Poderiam entretanto começar guerras, poderia nascer o filho ou morrer o pai, poderia haver um temporal que mudasse a paisagem, poderia engordar, emagrecer, sorrir ou chorar. Tudo isso só se saberia meses depois quando a carta chegasse lá a esse novo mundo desconhecido.
A sua freguesia, a cidade, a ilha estava cada vez mais distante e a angústia ocupava a sua mente que agora duvidava se realmente era melhor partir. Sem saber se alguma vez voltaria ali, ao seu cantinho. Se algum dia regressaria. Se a terra para onde ia era mesmo isso. Mais rica que a rica terra que acabava de abandonar.
Os contornos da ilha ainda se vislumbravam mas as saudades já o tinham açambarcado com todas as suas forças. Não podia voltar atrás.
Hoje partir para o outro lado, não é o mesmo. Não é ir ao mundo desconhecido sem imaginar o que os espera. Já foram feitas muitas visitas no Google Earth e até já viram a cor da porta da casa para onde vão, bem como tudo o que a envolve. Não há o mistério. Até já falam a língua deles.
Mas alguns, hoje, ou muitos, ainda partem da sua ilha, da sua freguesia, agarrados à mesma esperança que outrora outros abraçaram. Levam o coração igualmente apertado. Deixam a família e o conforto do seu cantinho.
Hoje enquanto o seu olhar abarca o vislumbre dos contornos da ilha, levando-os para longe, também eles choram a saudade que já sentem da sua ilha, da sua freguesia.
Sabem que poderão voltar, mas não sabem quando. Sabem que o mistério não é o mesmo mas a separação doí igualmente na sua alma.
São Roque, visto do mar pode ser deslumbrante, mas pode também ser saudade e lágrima reprimida na despedida.