Mara de Sousa Freitas
Mara de Sousa Freitas
A vida surge-nos através de um olhar. O mundo habita-nos nesse olhar e nele inscrevemos a nossa experiência, uma história por entre muitas histórias, uma história na História do mundo e da humanidade.
Uma história, que de forma ténue, mas sublime, recorda a fragilidade de cada Ser, no tempo e através deste. O olhar transforma-se no espelho da vida, reflete a luz ou a escuridão do mundo que em nós habita. Como o mundo pode ser bonito! Como o olhar pode ser transformador e construir novos e renovados mundos! Talvez o olhar possa mudar o mundo e, nesse instante, o mundo seja perfeito.
A vida é, em si e através de nós, esta condição de possibilidade permanente, que ergue cada desafio e dá forma a cada sonho. É como uma folha de papel, cuja face não pode ser cortada sem o seu verso. Somos todos condição de possibilidade e fragilidade. Somos, em nós, mas particularmente através dos outros, essa condição de possibilidade de vida, de amor, de valor, de felicidade, de Ser, ou não Ser, “eis a questão”.
Somos, e esse Ser pulsa para o outro, para os outros e para o mundo. A realidade talvez possa ser o sonho, a vida, e nesta o viver cada dia considerando a fragilidade, a vulnerabilidade humana – a nossa condição de finitude, as situações ou características que podem fazer de cada um de nós, em determinado momento, de forma permanente ou transitória, mais sucetíveis, mais frágeis, mais vulneráveis -, não apenas como uma limitação, mas antes e sobretudo uma potencialidade, um dinamismo que permite, a cada momento, nos (re)conhecermos e (re)conhecer o outro, como parte de um todo que convoca o nosso cuidado, amor e sentido de vida.
O grande princípio da responsabilidade, da justiça intergeracional e da importância de todos podermos contribuir para um mundo melhor, e para um futuro que se deseja prudente para os nossos filhos e para as gerações vindouras. Assim, talvez, o maior desafio dos tempos contemporâneos seja o de ser capaz de autodomínio, de responder ao compromisso da vida e encontrar, a cada momento, esse sentido. Deixar que a ambição seja gerada pelo coração e, desta forma, ter a oportunidade de realizar o máximo dos valores da vida. O desafio de encontrar-se no labirinto desta aldeia global, no inóspito olhar que tudo olha e nada vê.
Talvez o desafio maior da humanidade não seja a progressiva e massiva evolução tecnológica e científica – ela acontece, quer queiramos, quer não -, talvez o verdadeiro desafio das gerações atuais e das gerações futuras seja o desenvolvimento de competências, que nos permitam ser capazes de ver, sentir, relacionar-se, reconhecer o outro como ser senciente, com uma história, com sonhos, valores, um ser único e irrepetível, ainda que imerso na solidão da distância de um olhar.
O desafio não é novo, o desafio é renovado e procura continuar a responder ao modo como somos capazes de colocar o conhecimento e as novas tecnologias ao serviço da humanidade. Como usar o poder gerado através do conhecimento, essencial e insubstituível, para influenciar positivamente a vida no mundo, humano e não humano? A resposta é complexa! O desafio parece estar no “como” agir, no “como” decidir, na forma como entendemos a responsabilidade individual e social, no entendimento acerca do bem da pessoa e do bem comum, à luz da justiça intergeracional. Talvez o maior perigo sejamos nós, pessoas capazes e inteligentes e, algumas vezes, sem o menor sentido ético de como utilizar o conhecimento de forma proporcionada, justa, e no máximo respeito pelas diversas formas de vida na Terra. A História é cíclica, os acontecimentos repetem-se e parte deles devem-se, especialmente, ao esquecimento, inadvertido ou intencional – quase como uma estratégia de adaptação e sobrevivência -, ou talvez ao puro e primitivo hedonismo humano.
Tolentino Mendonça recorda que “uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor. A mística dos sentidos, porém, busca aquela ciência que só se obtém amando.” Do mesmo modo, o simples pulsar do coração, na sua acessão fisiológica/científica e metafórica/romântica recorda-nos esse movimento de vida, essa linha que separa entre a vida e a não vida. Esse pulsar entre um intervalo fisiológico que se define – em linguagem técnica -, como complexo de ondas P.Q.R.S.T., as linhas do traçado cardíaco vistas num eletrocardiograma – para cima ou para baixo, resultado de forças de ação que acontecem durante a estimulação do coração e se repetem a cada batimento, a menos que existam alterações -, e o traçado isoelétrico, aquele que se define por uma paragem desse pulsar e transformação numa linha reta, associada ao “sem vida”.
“To be or not to be! Ser ou não ser, eis a questão, recordou-nos Shakespeare! Talvez o espaço de vida possa acontecer nesta linha que separa, neste intervalo entre o ser e o não ser, neste instante de cada dia em que nos é concedido o privilégio de ver o nascer do Sol, de sentir o calor dos seus raios no rosto, de experimentar-se neste admirável mundo. Neste instante em que o Sol se põe e o escuro do céu é preenchido pelo brilho ténue, mas belo, da lua e das estrelas, ou simplesmente permanece na escuridão cerrada.
Recordar o momento do nascimento de uma criança, o seu primeiro sopro de alma, o seu choro de vida, esse instante que cria a possibilidade de cada Ser poder experimentar a vida e experimentar-se nessa vida. Assistir, paulatinamente, ao seu desenvolvimento a partir da terceira pessoa do singular, num eu parental partilhado, para a autonomia do “eu independente”, dos sucessivos pronomes possessivos, da edificação do Ser, deste caminho de viver-se e experimentar-se, numa socialização familiar primária, evoluindo para as experiências com o outro, os outros e com o mundo sensível. Cada momento fica gravado no livro das memórias do mundo que nos habita – na afetividade -, e fará, para todo o sempre, parte da história única, irrepetível e intransmissível de cada um. O passaporte entre a realidade, a vida e o sonho.
Do mesmo modo, “o tempo do morrer”, o adeus à vida, o último sopro da alma, um suspiro de vida que se apaga. Os breves instantes do (re)viver as memórias e o encerramento de mais um ciclo de vida, a última página da história de uma vida, um mundo que continua a habitar aqueles que permanecem e, simultaneamente, se extingue. Quiçá, por isso, quando fazemos as pazes com a morte, “quando aprendemos como morrer”, compreendemos a importância de aprender a viver, aproveitar cada instante nesta linha que separa, mas sobremaneira unifica e liga para a eternidade, pelo amor, pelos laços, pelo cuidado e pelo respeito.
E se amanhã eu não acordar? O que restará de mim? “Quem sou eu?” “O que será de mim?” As famosas questões de partida e de chegada, trazidas por Kant e eternizadas nas pequenas perguntas às grandes questões da vida.
Lá no alto da minha aldeia, no Santo da Serra – aquele sítio mágico, aquele bocadinho de todos nós que o habitamos, e que em todos nós habita -, o nascimento, a vida e a morte continuam a ser celebrados e partilhados numa narrativa que ergue a sua própria história, a da nossa aldeia. Que júbilo eu sinto ao constatar este facto. Que alegria humana ainda poder nascer, crescer, envelhecer e morrer em comunidade. “É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança”, diz-nos o provérbio africano, e certamente é. Indubitavelmente. São as pessoas, os laços que estabelecem, as relações que sedimentam, a confiança que desenvolvem, as histórias que narram, as dificuldades que vencem – a vida entre o sonho e a realidade -, os alicerces onde a criança, pela mão de toda a aldeia poderá experimentar-se e viver.
Uma aldeia onde podemos observar as várias gerações, o valor indelével de cada testemunho de vida, da sabedoria construída pela vida. Os avós que cuidam dos netos e narram as histórias dos filhos – “quanto tinhas esta idade, filho, eras exatamente assim” -, recordando aquilo que o tempo apagou da nossa memória. A vida que aproxima gerações, reconhece o amor e o cuidado, na infância ou na velhice, em todos os momentos da vida, como o centro da vulnerabilidade humana.
Vivemos numa aldeia global, todavia precisamos da nossa aldeia local. Precisamos das pessoas. Precisamos de sentir que a nossa existência continua a ter sentido. Precisamos de um sorriso, de uma gargalhada. Precisamos – tantas vezes -, que a nossa aldeia nos empreste o seu olhar sobre o tempo que passou, sobre a experiência vivida, e devolva o mundo perdido nos fios da fragilidade, nos devolva bocadinhos de nós, sob a forma de esperança, confiança, compaixão e amor. Existimos em relação e reconhecemo-nos nessa viagem, através do outro, com gratidão ou, simplesmente, desistimos pela perda deste mundo que deixou de habitar em nós.
Na minha aldeia, todos continuam a deixar parte de si e a levar parte da minha aldeia, da família, dos amigos, dos vizinhos, dos animais, das terras. Por vezes, questiono-me se partiram – além da ausência física -, pois continuam a habitar cada espaço da nossa casa, cada gesto, cada palavra, cada cheiro, cada som. Continuamos juntos, mesmo quando existe uma cadeira vazia à mesa, quando no banco da Igreja já não encontramos a pessoa de outrora, quando à saída da missa de Domingo o vazio da ausência – por todos notado -, reenvia para a nossa própria condição de finitude e, rapidamente, para o amor que deve ser partilhado, para a vida que merece ser vivida, para as palavras que não podem esperar pelo amanhã e para os gestos genuínos e autênticos, neste movimento contínuo e permanente de vida.
Hoje, sentada, viajo pela minha aldeia. Regresso a casa e existe um lugar vazio à mesa. Sento-me no nosso sofá, vejo-te e ouço-te a tocar harmónica. A última vez que o fizeste foi há um ano e no teu colo estava sentado o teu neto. Ele fixava o teu olhar e o seu rosto iluminava-se de magia a cada melodia. A música, o sonho que nunca realizaste, os instantes de vida que sempre cuidaste… Naquela manhã, sabias que a vida te fugia por entre os dedos, entre cada inspiração forçada, entre cada sopro, progressivamente mais fraco. Fazias pausas e recomeçavas. Sorrias e dizias adeus, gravando cada instante para a eternidade naquele colo, naquele beijo, naquele olhar habitado por amor incondicional, por cuidado, e cujo som era de despedida, mas sobretudo de relação, eterna e indelével.
Hoje, permaneces connosco, habitas em nós e estás na nossa aldeia, na nossa casa, de onde nunca sairás. Em cada um de nós existe bocadinhos de ti. Cada espaço da nossa casa representa tanto de ti. As obras que deixaste são história da nossa aldeia e serão, para sempre, parte da nossa história ao longo de todas as gerações. Como o tempo renova o olhar e revela o que, efetivamente, nos habitou, traz a lucidez do amor, da verdade perfeita, ou talvez última, da transformação e do caminho de regresso. Da viagem daqueles que nunca partiram da nossa história, da viagem que cada um de nós está a fazer e da escolha do “como” queremos continuar essa viagem, até à última estação. A vida, entre o sonho, a realidade e o viver, eis o verdadeiro desafio!
No silêncio, o teu olhar continua a falar de amor…