Rogério Gouveia Fernandes
Rogério Gouveia Fernandes
Em 1969 uma pequena povoação do estado de Nova Iorque recebia o Woodstock, provavelmente o mais famoso festival de música da história. Bethel era o nome desta remota localidade, com uma população semelhante à cidade de Santana mas com uma densidade populacional muito inferior.
Na Madeira, e algumas décadas depois, nasce um festival mesmo no centro do Funchal, num ambiente urbano e controlado, densamente povoado, com limites bem definidos e relva aparada. Sem lugar para erros, desvios ou excessos. Times Square ou Central Park foram nomes que eventualmente passaram pela cabeça dos organizadores do Woodstock, mas imagino-os num pub qualquer da Quinta Avenida a rir desalmadamente destas opções, após alguém lançar a ideia para cima da mesa.
Um festival de verão que se preze (e digno desse nome) acontece no meio do nada, repleto de poeira, acompanhado de massa com atum, e a abarrotar de tendas baratas e mal amanhadas. O caos faz parte da equação, e os imprevistos acontecem (embora a segurança não deva ser descurada).
As festas populares do Chão da Lagoa e da Fonte do Bispo (à parte das temáticas e motivações) têm mais ares de festival de verão do que qualquer evento que aconteça no Funchal. E nem sequer é uma embirração com o centro da cidade ou com os jardins municipais, porque acredito que um festival de jazz adapta-se perfeitamente a este ambiente mais familiar, exclusivo e intimista.
No centro do Funchal quer se fazer tudo, mesmo quando não há condições para nada. E descentralizar nem lhes passa pela cabeça. As barracas (ou stands) da placa central, por exemplo, renovam-se constantemente com diferentes motivos, em diferentes alturas, mas sem grandes diferenças entre elas. São estilizadas e padronizadas, com uma imagem cuidada mas com pouca personalidade, mudando apenas a temática e o recheio conforme a época ou a “estação”.
Já os arraiais a norte são mais autênticos e imprevisíveis. As barracas não são feitas com régua e esquadro ou fios de prumo, e surgem nos locais mais inesperados e improváveis. Os comes e bebes são diversificados e limitados ao stock existente, variando entre o tremoço bem temperado, o amendoim com casca, ou a bela da moela guisada, regada com o clássico vinho seco com laranjada.
Os tapetes de flores são feitas com flores regionais (imagine-se…), fruto de um trabalho voluntário cada vez mais entregue a uma geração menos jovem, mas nem por isso menos crente e dedicada. Os festeiros, esses, assumem o comando da organização pelo amor à camisola, e jamais pelos proveitos que da “terrinha” possam retirar. Por aqui ‘lucrar’ é chegar ao fim da festa sem perder (muito) dinheiro e reencontrar velhas amizades; e ‘investir’ é perpetuar este sentido de pertença e comunidade.
Até o crowdfunding já era prática comum por estas paragens mesmo antes do nome ser popularizado, pois a festa só é possível através dos donativos da população (envelhecida e pensionista na sua maioria. Ou por meio do “capital estrangeiro”, na figura do emigrante, que muitas vezes nem consegue ali marcar presença mas que faz questão de contribuir).
Patrocinar ou acarinhar o arraial madeirense (ou outra manifestação cultural mais a norte) não passa por injectar milhões no fogo, nas flores, ou nas vestimentas coloridas e com surpreendentes acessórios e lantejoulas. O apoio está em reconhecê-lo enquanto parte da identidade e matriz regional, promovendo-o de forma estruturada e integral.
Trata-se, no fundo, de um cartaz turístico mais alternativo, direcionado para um público que procura experiências autênticas e memoráveis, e não festinhas padronizadas, centralizadas e à la carte.
A promoção a norte ainda é deficiente, é certo, e faz-se não raras vezes por canais internos e em circuito fechado (muito embora as redes sociais se assumam cada vez mais como grandes aliados).
A feira do gado do Porto Moniz; a música nas ruínas da Boaventura; ou a festa do Arco de São Jorge, são exemplos de acontecimentos sobrepostos. E as freguesias, paróquias e demais entidades promotoras, deveriam contemplar e antecipar estes cenários. Em vez disso digladiam-se por atrair um maior número de participantes para as suas “capelinhas” (de um universo populacional cada vez mais disperso e escasso).
Ir à feira do gado pela matina; assistir a um concerto mais erudito na Boaventura ao fim da tarde; e acabar a noite no Arco de São Jorge ao som de uma música mais popular, poderia muito bem ser comunicado de uma forma simples e efetiva, capitalizando uma audiência maior em torno de vários eventos (distribuídos por várias freguesias e concelhos).
Em última instância potencializava-se o turismo interno com programas mais ricos, criativos e diversificados.
Urge pois repensar estratégias e prioridades e olhar para a Madeira como um todo, e não de forma enviesada. Haja boa vontade, bom senso e cooperação, porque o capital não será certamente o maior problema.