Paula Noite
Paula Noite
O ar estava impregnado dum cheiro pesado. A petróleo. Mesmo com todas as janelas abertas.
A mesa, de madeira bem escura, já um pouco roída pelo caruncho, estava tapada com um velho cobertor escuro. Sobre ele estendia-se um lençol da cor da neve. Bem na ponta da mesa estava um pires de loiça velha, com a solução que para nós era mágica: petróleo misturado com anil. Mergulhado no líquido cor de anil estava a boneca – um pano com um pouco de algodão, amarrado com um fio, em forma de chucha. Era a boneca- assim designada – que passaria os desenhos para o tecido.
Anteriormente, com o papel” manteiga” (vegetal), a minha mãe tinha decalcado o desenho de umas flores grandes e um caseado às curvas. Sentada, uma almofada sobre os joelhos, picava com a ponta de uma agulha de bordar as linhas a lápis, com uma paciência infinita. Nós, para imitarmos, apanhávamos as folhas de couve e com um pico da laranjeira a servir de agulha, picávamos também as nervuras da folha…
Chegava então o momento de passar para o tecido de linho o desenho decalcado e picado. A boneca cor de anil era passada vigorosamente por mão segura sobre a folha de papel “manteiga” bem esticada sobre o tecido (nós segurávamos as pontas). Era retirada a folha, com cuidado e lá estava estampado um belo desenho para depois bordar. O passo seguinte era passar vigorosamente um pano velho sobre a folha já azulada e dependurá-la no arame, com molas para secar bem.
Outras toalhas, enormes, eram trazidas pela Isabelinha que “dava” bordados. Dar bordados, entenda-se era trazê-los da fábrica e distribuir pelas bordadeiras para com mil pontos eternizarem o matizado de uma arte. Por vezes, além das toalhas vinham os maços de bordados – panos de mesa, redondos ou retangulares.
Era então que se sentavam, juntas, as vizinhas no terreiro calçado de pedra, à sombra de uma figueira e de uma cameleira branca, a bordar. No chão, sobre uma saca ou num banco rude de madeira, a toalha estendida, preparavam-se, por entre risos e conversas. Um dedal e dedeira, agulha e linhas acastanhadas, outras vezes azul claro.
Muitas vezes tinham uma criança no colo estendida, debaixo da toalha. Era aí mesmo que lhe davam de mamar enquanto que, num movimento ritmado, sempre igual, puxavam a agulha com determinação e faziam nascer aquela obra no linho, seda ou organdi, que um dia correria mundo, levando um pouco da história daquelas mulheres para além do horizonte, linha que certamente nunca iriam transpor. De ponto em ponto. Contar-se-iam milhares. Não sei quantos. Nascia o matiz, o arrendado, o bastido, as cavacas, o caseado, os garanitos, ilhós, ponto de areia, ponto sombra, ponto francês, pau, ponto chão…
Anonimamente aquelas mulheres foram eternizadas na beleza de uma arte que levou consigo, para além do mar, cintura da ilha, horas de conversas a fio, a nossa “bilhardice”. Pontos que religiosamente guardam os segredos de uma conversa, algures num terreiro de calçada, na sombra de uma árvore; onde se falou, baixinho, dos amores, dos sonhos, dos medos, de uma vida de miséria que o preço dos pontos do bordado nunca conseguiu apagar…