Tânia Sofia Gonçalves
Tânia Sofia Gonçalves
Na minha freguesia de Santa Maria Maior, o povo criou uma tradição com a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
Segundo as narrativas dos mais velhos, numa determinada época, um grupo de padres missionários trouxe para a paróquia a devoção da Santinha fechada num oratório, uma caixinha de madeira, com as janelas abertas ao mundo, com uma simplicidade bem trabalhada, resguardando a Nossa Senhora num pequeno altar. Falava-se que trouxeram vinte desses oratórios que, entretanto, depois, foram distribuídos pelos diversos sítios, da paróquia do Sagrado Coração de Jesus (Boa Nova), a partir dos quais nasceu esta forma diferente do povo se relacionar com o divino dentro da intimidade do seu lar.
No Caminho do Terço (Farrobo de cima), possivelmente, também em outras zonas da freguesia e em outras espalhadas pela região, um grupo de pessoas devotas responsabilizaram-se por uma dessas imagens que passou a percorrer as casas das pessoas. Na casa da minha avó Alegria, o oratório permanecia no quarto dos santinhos, com uma lamparina acesa a alumiar a fé da nossa família, um dia e uma noite.
Lembro-me bem, o meu avô não era homem de ir à missa, mas o dia em que a Santinha entrava dentro da sua casa, os rituais tinham de ser respeitados e o sagrado ganhava uma outra dimensão debaixo daquele teto. Nunca vi o meu avô rezar, mas a minha avó sentia na alma esse significado de conversar com o divino, ajoelhava-se perante a Santa e rezava por todos nós, pedia a proteção e a bênção da sua família.
Ainda reservo na lembrança os meus passos ansiosos e o coração a palpitar sempre que, quando chegava ao nosso dia, me davam a honrosa missão de ir à casa da vizinha buscar a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e trazê-la, nas mãos, para o lar da minha Avó.
No dia seguinte, à noitinha, uma outra família batia à porta para levar, na sua vez, a presença divina à sua morada, onde toda a família aguardava com modos de solenidade. Depois de se benzer, erguia o oratório com as mãos e levava-o por dentro dos caminhos, das travessas, dos becos e das veredas até ao lugar reservado para passar o dia e a noite numa outra moradia que precisava de viver por perto a ansiedade do seu mistério. E era assim durante todo o ano, havia o dia de ir à igreja, onde eram retiradas as esmolas que, entretanto, as pessoas iam deitando numa pequena caixinha que fazia parte do oratório. Depois, regressava à rotina de levar a esperança à habitação de cada família.
Com o correr do tempo e, ainda sem ninguém perceber o porquê, a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro fixou-se numa das casas e dali nunca mais saiu. Houve uma apropriação da Santa que, como prova a história do povo, não pertencia a uma só pessoa, ou família, nunca fora propriedade privada de ninguém. Era e, apesar de estar fechada entre quatro paredes, continua a pertencer ao mundo, ao divino. A verdade, porém, é que se perdeu, infelizmente, não só essa forma distinta de promover uma ligação social que unia as pessoas à sua fé, como também uma bonita e genuína tradição religiosa.
Desde criança que as tradições religiosas fizeram parte das minhas vivências. Em Santa Maria Maior as superstições não eram diferentes dos outros recantos da nossa ilha, embora saibamos que, em cada sítio, a dimensão da devoção, a piedade do povo, as rezas para as curas que a medicina não conseguia nem consegue dar resposta, as lendas e os mitos sobre o além, se adaptem às características e ao modo de viver de cada população, de acordo com as suas crenças e medos enraizados.