Nestes dias de março, durante cerca de um mês, algumas localidades da Madeira que possuem engenhos, ganham uma vivência, uma atmosfera e odor diferentes. É a época de laboração dos engenhos. Calheta foi terra de açúcar e de engenhos. Nos inícios do povoamento aqui se produziu “ouro branco” e desse período áureo restam importantes referências patrimoniais como a Capela dos Reis Magos, no Estreito das Calheta, com o seu riquíssimo retábulo de Antuérpia. Na atualidade, a produção e transformação da cana-de–açúcar ainda hoje movimenta a economia do concelho.
Este ano assisti ao início da laboração na Sociedade de Engenhos da Calheta, por coincidência no meu dia de aniversário. Este é um espaço fabril que ainda tem a laborar antiga maquinaria centenária, que já funcionou a vapor, mas atualmente é eletrificada. Como forma de contextualizar a sua história, possui um pequeno núcleo museológico que permite acompanhar as várias etapas do processo de laboração. É possível fazer visitas guiadas, nesta época assistir à laboração. Para alimentar o palato, pode-se degustar poncha e bolo de mel, sentados numas tradicionais cadeiras de vimes. Os produtos, ali fabricados, como bolo de mel, broas, rum, licores, entre outros, podem ser adquiridos.
Este engenho além de ser o mais antigo do concelho da Calheta, possui uma particularidade interessante: o apito. Este apito que marca habitualmente o início da laboração é um apito recheado de história, pois pertenceu a um iate americano, o “Varuna” que naufragou entre a Ponta do Pargo e as Achadas da Cruz no início do século passado, no dia 16 de novembro de 1909. Esta embarcação de luxo, tinha cerca de 50 tripulantes e pertencia a um milionário americano Eugene Higgins, que sobreviveu ao naufrágio. Entre os pertences resgatados estavam o apito que hoje ainda executa a sua função na fábrica da Sociedade de Engenhos da Calheta.
Mas voltando à laboração no engenho, estes dias são caracterizados por uma grande azáfama: os carros carregados de cana descem a estrada e estacionam junto ao engenho. Depois as canas são transportadas para o interior da fábrica,onde num ritmo cadente das máquinas, as canas são espremidas e depois saem divididas em garapa (o sumo) e a palha que posteriormente é utilizada para adubar os terrenos.
Da garapa que sai cerca de 40% segue para grandesrecipientes de cobre, onde fica a cozer e a evaporar para fazer mel. A restante quantidade é utilizada no fabrico de rum após um processo fermentação e destilação.
Em terras que outrora foram de “ouro branco” ano após ano cumpre-se o ritual da laboração do engenho da Sociedade de Engenhos da Calheta, com os aromas, o fumo e toda a azáfama da apanha e do transporte da cana sacarina.
Nesta época do ano, ao vermos os engenhos em laboração como que recuamos no tempo para a época áurea do açúcar na Madeira, que trouxe muita riqueza não só em termos de arte flamenga bem como em termos de património edificado.
São resquícios do doce “ouro branco”!
Isabel Gouveia