Elisa Seixas
Elisa Seixas
Foi a primeira pergunta que fiz quando recebi o repto para escrever sobre São Roque. Já passei por inúmeras freguesias na minha vida. Nasci em São Pedro, vivi na Sé, estudei em São Pedro e São Martinho, vivi em Câmara de Lobos e vivo no Estreito. Há quatro anos que trabalho em São Roque. É lá que passo os meus dias, é onde vou pôr o meu filho à escola, onde exerço a minha profissão, onde convivo com alunos e alunas, amigos/as e colegas, encarregados/as de educação.
Há quatro anos não fazia ideia de como seria viver e trabalhar em São Roque. Pelo menos numa parte de São Roque, a zona alta, do Galeão.
Quando cheguei à escola onde trabalho, não fazia ideia de que os meus alunos e alunas consideravam que não estavam na cidade. Descer à baixa, muitas vezes a pé, significa ir à cidade e não acontece todos os dias.
Também não sabia, ainda não sabia, que iria encontrar uma comunidade que está preparada e ansiosa para investir em si. O número de formandos/as adultos/as na escola onde dou aulas assim o atesta. Nunca senti a importância da cerimónia da bênção das capas como em São Roque. Não é que nas outras escolas por onde passei não fosse (e já passei por algumas) mas em São Roque, principalmente entre os alunos e alunas que frequentam os cursos de educação e formação de adultos, a cerimónia reveste-se de uma importância fundamental, uma questão de orgulho que atesta que se singrou, que se ultrapassou todas as dificuldades, que se soube ser persistente.
Há três anos fui madrinha do grupo de alunos/as que terminou o 12.º ano e estive muito envolvida em tudo o que dizia respeito à cerimónia. Foi um ano em que a organização foi particularmente difícil porque a entidade que por norma oferecia as flores para enfeitar a igreja para a cerimónia não as tinha – e não se pode oferecer o que não se tem.
Foi então que nos lembramos de endereçar um pedido à Junta para que nos ajudasse no problema de última hora. Parece supérfluo, mas não é. Temos alunos/as que de todas as idades, pessoas cujo maior sonho é concluírem o 12.º ano, poderem envergar o fato de finalista após uma vida de trabalho duro, muitas vezes em empregos difíceis e mal pagos, reservados a quem não tem habilitações. O regresso à escola é, em muitos casos, uma questão de orgulho, de terminar o que não se teve a oportunidade de realizar mais cedo. No ano em que fui madrinha, o nosso aluno mais velho tinha 69 anos. Muitas vezes, é a primeira pessoa da família a poder celebrar uma cerimónia destas, ou é a realização de um sonho de juventude, quando se foi obrigado/a a sair da escola para ajudar a família com mais um ordenado. É por isso que as flores, a falta de flores naquele ano, era um apoucar do esforço das pessoas que finalmente celebrariam a aposta na sua educação.
Polidamente, a junta respondeu que não tinha flores (depreendo que verba também não) e que esse seria um problema a resolver pela Câmara. Pareceu-nos absurdo.
Resolvemos nós. Apanhamos flores, recolhemos dinheiro, a comunidade escolar unida na angariação de fundos. Na véspera, a sala multidisciplinar da Escola Básica de 2.º e 3.º Ciclos Dr. Eduardo Brazão de Castro encheu-se de gente para ajudar as alunas e professoras mais experientes na arte de fazer arranjos florais. A inépcia era quase tanta quanto a força de vontade. E na verdade, antecipou-se um bocadinho a festa, com conversas sobre percursos, desejos, expetativas enquanto se podava ramos de plantas que poucas vezes entram nas artes florais mais abonadas.
Fizemos os arranjos, decoramos a igreja, a cerimónia fez-se, com passadeira vermelha para mais de 100 formandos/as que terminaram o percurso escolar naquele ano. Algumas dessas pessoas estão de regresso à escola, decidiram fazer outras formações, continuar a apostar em si.
São Roque é assim. Quando não há resposta das entidades oficiais, arregaça-se as mangas e, com o que se tem, com o que se sabe (e também com o que não se sabe e não se tem) resolve-se o problema. Resiliência. Muita resiliência.