Marco António Gonçalves
Marco António Gonçalves
A cereja é um pequeno fruto muito apreciado, pela sua cor e pelo seu sabor. Essa apreciação positiva deu origem a um ditado popular que pode ser formulado nestes termos: quando alguma coisa nos ajuda a concluir com sucesso uma obra, dizemos, com satisfação, que temos «a cereja em cima do bolo».
A flor da cerejeira sempre atraiu as abelhas; a tarefa de iniciar a colheita das cerejas e de as debicar, até ao final da safra, está destinada, por natureza aos pássaros. E até aqui tudo estava equilibrado no reino das cerejeiras que, na Madeira, é o Jardim da Serra e um pouco o Curral das Freiras. O Jardim da Serra tem a marca registada de «Terra das Cerejas», tendo o Eng. Vieira Natividade (1899-1968), já no ano 1947, designado esta localidade como o «Solar das Cerejeiras».
Porém, nos tempos que correm, quer as cerejeiras, quer os seus frutos deliciosos passaram a ter outros seres neles interessados: vários tipos de fungos têm atacado as suas raízes e diversas pragas de insetos, durante a primavera, dizimam-lhe as folhas e estragam-lhe os frutos. Devido a este e a outros fatores, a desordem instalou-se no reino das cerejeiras. E talvez tenhamos algumas responsabilidades, em grande parte daquilo que, de negativo, está a acontecer a esta variedade de árvore de fruto.
No Jardim da Serra, nos terrenos com melhor aptidão agrícola, quer de sequeiro, quer de regadio, cultiva-se hortícolas e semeava-se leguminosas e cereais. Nas restantes áreas de terreno, havia uma grande ocupação com pereiros e macieiras; frequentemente, ao longo dos caminhos e das veredas, havia linhas de cerejeiras; era ainda hábito o cultivo destas árvores, junto às casas.
Até os anos 50 Séc. XX, verificava-se um cultivo controlado de cerejeiras devido às especificidades do fruto. Enquanto a maçã, por ter grande poder de autoconservação, era armazenada nas lojas, podendo ser retirada e vendida ao longo de meses, a cereja depois da apanha tinha de ser imediatamente transportada, vendida e consumida. Além disso, estes frutos tinham de ser transportados às costas e a pé, sobretudo para o Funchal.
Estes fatores explicam porque é que a produção de cereja daquelas épocas era tão reduzida. Contudo, a situação alterou-se a partir da década de 50 do século passado. Foi aberta uma estrada para fazer a ligação entre o centro do Estreito de Câmara de Lobos e aquilo que é hoje o Jardim da Serra.
No final dessa década, as camionetas e viaturas de mercadorias passaram a percorrer aquela estrada. Isto facilitou, como é evidente, a circulação de pessoas e o transporte de produtos, entre eles a cereja. Rapidamente, houve um aumento do cultivo de cerejeiras, à custa das áreas agrícolas, sem abandonar estas últimas culturas.
Passou-se então a intensificar, consociando cerejeiras e hortícolas. O exemplo clássico são as semilhas que ainda hoje são plantadas durante o mês de janeiro e que desenvolvem o ciclo cultural durante o repouso vegetativo da cerejeira, ou seja, enquanto esta não desenvolve as folhas. Os terrenos bem fertilizados pela incorporação de estrumes, giestas, ervas e pelo cultivo de leguminosas, conferiam às cerejeiras vigor e grande produção de frutos.
Admite-se que as cerejeiras são entre as fruteiras de clima temperado uma das espécies mais “mimosas”, por outras palavras, quando habituada a “bons tratos” exige-os durante o seu ciclo de vida. Isto é particularmente relevante quando a cerejeira assenta em porta-enxertos com “sangue de ginjeira”.
A cerejeira ou Prunus avium como todos sabem produz cerejas doces, por sua vez, a ginjeira ou Punus cerasus produz ginja que é também conhecida por cereja ácida. Ora, parte do problema atual das cerejeiras no Jardim da Serra reside no facto de a maior parte das cerejeiras estar enxertada em ginjeiras, ou seja, combinam-se duas espécies próximas mas geneticamente diferentes. Quando se combinam espécies diferentes dá-se um fenómeno de incompatibilidade que é diferido no tempo, isto é, este fenómeno pode permanecer adormecido e só manifestar-se, quando confrontado com um fator determinado. Temos assistido no terreno a este diferimento temporal, que pode ser de poucos anos ou mesmo décadas.
Fenómenos sociais como a emigração nos anos 70 e 80, o impetuoso crescimento da construção civil, a partir dos anos 90 e mais recentemente, a chegada da globalização, contribuíram marcadamente para a desvalorização dos produtos agrícolas regionais e, por conseguinte, de toda a atividade agrícola. A agricultura madeirense altamente dependente de mão de obra braçal começou a ficar desprovida de mão de obra, iniciando-se então um processo de abandono dos terrenos agrícolas. Isso levou a que as cerejeiras, habituadas a elevadas cargas de matéria orgânica (M.O.), deixassem de o ser, iniciando um processo de enfraquecimento. Em paralelo e para aqueles que ainda continuaram esta atividade, começaram-se a introduzir adubos químicos (“guanes”). Os estrumes exigiam maiores quantidades e, por isso, eram mais difíceis de transportar, uma das razões pela qual foram sendo abandonados e substituídos pelos “guanes”.
A pouca mão-de-obra também se traduziu em menor disponibilidade e capacidade para aplicar enxofre, contra a larva-lema após a colheita da cereja. Este inseto alimenta-se da clorofila das folhas das cerejeiras, ou seja da parte verde, impedindo-as de fazer a fotossíntese e assim de produzir energia para as suas funções vitais e de acumular reservas para o ano seguinte.
Um pouco mais tarde, com a chegada dos herbicidas químicos e porque se deixava de cultivar tão intensamente hortícolas, as infestantes começaram a ser controladas por via química, em vez da via manual (foice, enxada e sacho). Mais recentemente, com a chegada da Drosophila suzukii a mosca que agora ataca massivamente a cereja, introduziram-se os inseticidas químicos.
Todo isto levou a um enfraquecimento da vida, no solo e em todo o ambiente envolvente às cerejeiras. A adormecida incompatibilidade começou então a manifestar-se, com a mortalidade em massa nas zonas mais quimicamente carregadas. Como se não bastasse, os invernos outrora frios e chuvosos, bem como as primaveras húmidas deixaram de o ser.
Assim sendo, passou a existir menos água infiltrada em profundidade, reduzindo-se as imprescindíveis reservas para atravessar os meses de verão, numa fruticultura ainda de sequeiro. Mais uma vez o sistema radicular superficial das ginjeiras não permitiu uma adequada adaptação das cerejeiras aos novos tempos.
Assim, árvores débeis, quer pela má nutrição, quer pela química de toda a ordem, quer pela seca e tempo quente, levam de modo irreversível a que a incompatibilidade se manifeste frequentemente. Ou seja, um fenómeno que naturalmente poderia ocorrer esporadicamente, passou a ser regra.
Com toda esta panóplia de fatores e conjuntura adversa, os fungos decompositores da matéria orgânica, como a Amillaria mellea, começaram a atacar a única matéria orgânica que ainda restava no solo, as raízes das cerejeiras.
Existe ainda mais um fator nesta equação de mortalidade, o envelhecimento natural das árvores. Habituamo-nos a que as árvores produzissem infindavelmente e esquecemo-nos que as árvores são também seres vivos e que, por conseguinte, nascem, crescem e morrem. Deste modo, a par de todos estes problemas é perfeitamente normal que cerejeiras enxertadas em ginjeiras com 30 ou mais anos, morram simplesmente por estarem velhas.
Estes desequilíbrios de ordem social, climática e ecológica levaram ao atual definhar das cerejeiras no Jardim da Serra. Podemos hoje notar que as manchas de cerejeiras que persistem, estão enxertadas em cerejeira brava ou Prunus avium, continuam a ser fertilizadas, tratadas e até regadas. O futuro da ceresicultura no Jardim da Serra depende assim, de dois fatores: a experimentação e o cultivo.
Por um lado, da investigação e experimentação de porta-enxertos que combinem boa compatibilidade, com resistência aos fungos, entre eles, a Amillaria mellea e à seca, bem como, promovam boas produções. E, por outro, um cultivo adequado que promova o equilíbrio do solo e do ambiente envolvente.
É portanto imperativo, abolir todo e qualquer tipo de herbicida, «guano» e/ou inseticida químico dentro dos ainda existentes cerejais. E voltar à aplicação de estrumes bem curtidos ou composto orgânico no solo, ao controlo mecânico ou animal das infestantes e ao tratamento com fungicidas e inseticidas biológicos. É preciso, pois, uma mudança radical, neste sector, para continuarmos a produzir boa cereja, digna de ser colocada «em cima do bolo».