Filipe Gonçalves
Filipe Gonçalves
Antes de começar a desfiar estas linhas, faço uma ressalva: não pedi autorização para escrever sobre a minha protagonista.
Julguei ser deselegante estragar o fator surpresa. Espero que não me leve a mal.
A pessoa que hoje quero homenagear é a minha professora da 2.ª classe. Chama-se Gilda.
Era e continua a ser bonita. Tem mesmo aquele ar de professora primária – não sei muito bem traduzir em palavras.
Contente, dinâmica, bem-disposta, e acima de tudo, disposta a dar tudo pelos alunos.
Viajamos 30 anos. Subimos ao segundo andar. A sala não tinha porta. Os armários castanhos, e com vasos de plantas altas a servir de decoração, delimitavam o espaço. Paramos então na pequena e iluminada sala de aula da Escola do Estreito de Câmara de Lobos – na minha altura dizíamos: Escola de cima.
A vista dava para o campo, em cimento. E uma parte em areia preta para os saltos em comprimento. À volta, um pequeno jardim. E árvores. As mesmas que por vezes desviavam a nossa atenção em tempos mais aborrecidos.
E as aulas. Todos os dias, eram dias diferentes. Diria até, curtas de mais para tanta emoção. A professora Gilda trazia sempre novidades para dentro da sala. Ora um jogo divertido, ora uma estratégia para aprender. Mas a mais rebuscada era sobre as tabuadas. Sem complicações.
Com sete anos, tabuada para mim soava a problema, e dos grandes! Mas havia uma pequena ajuda: um pequeno livro. Chama-se A Tabuada do Ratinho. Tinha de tudo: medidas de comprimento, de volume ou capacidade, a moeda, na altura escudo, e também as tabuadas.
Era o desenho do ratinho que me fascinava e me levava a viajar pelos números.
E foi graças àquele livrinho, da autoria de Alfredo Cabral, que aprendi também outras questões matemáticas.
Guardava-o religiosamente dentro de um dos dois compartimentos da mochila como medo de perder ou estragar. A cada página o meu olhar espantava-se.
Mas eram as tabuadas que me causavam mais fascínio.
Aqueles números tinham uma ordem que haveria que respeitar.
Ganhavam vida aos olhos – escuros, mas brilhantes – da professora Gilda. Tinham identidade, diria. Mas o que mais me seduzia era a forma como tratava a tabuada. «É simples» – dizia! Juntava 2 com 2 e o 4 aparecia como resultado mágico.
E havia prémios para os melhores.
As regras eram simples: sempre que alguém acertasse no resultado de uma tabuada, integrava um ranking semanal. O melhor tinha um prémio. Comprado pela própria professora Gilda.
Ganhei alguns.
Um afiador em forma de animal.
E uma borracha em forma de cato. Recordo-me desse dia, como se fosse hoje.
Todos os dias uma tabuada diferente. Primeiro as mais fáceis. Começou com a dos 1, depois a dos 2 depois veio a dos cinco.
Mas a surpresa estava reservada para a dos 9. E, a professora Gilda não teve medo em desvendar o truque. Isto sim é ensinar.
«Simples», reforçava. 9 em cima, 9 em baixo. Depois era só numerar de forma crescente (do pequeno para o maior) e depois decrescente (do maior para o mais pequeno).
A mão segurava com firmeza o giz, e de letra bem redondinha, deixava os meus olhos, brilhantes de espanto, descobrir sucessivos truques.
Sentia orgulho na professora, porque os outros meninos de outras salas diziam: «Gostava de ter uma professora assim». Aquilo sabia-me a vaidade.
Vieram depois as férias grandes.
Como odiava as férias grandes.
A professora Gilda acabara de anunciar que não mais seria ‘a minha professora’. Tinha passado para a 3.ª classe. Porquê! Não era justo, devia ter ficado para sempre na 2.ª classe a aprender coisas da terceira e quarta, sem nunca mudar de professora!
Lembro-me do último dia. Lembro-me de vê-la a abraçar cada um, com a mesma força e carinho. Quando chegou à minha vez, o meu metro e meio de gente não conseguiu mais do que abraçá-la pela cintura! Encostei a cabeça e senti, naquele momento, que seria o adeus.
E assim foi. Hoje ainda guardo esse abraço, tão intenso como o de há 30 anos.
Há dias, em conversa com o meu irmão, foi-me dito que a professora Gilda reformou-se. «Tão nova», disse em espanto. Mas, afinal já se passaram 30 anos!!!
Disse-me também que no final do ano letivo, os meninos prestaram-lhe uma homenagem. Tive pena de lá não estar. Deve ter sido bonito. Não duvido. Tão bonito quanto aquele sorriso que ainda mantém.
Vi-a há dias a correr pelos corredores do Lobo Marinho atrás dos seus meninos que foram ao Porto Santo em viagem de finalistas. A mesma alegria, o mesmo carinho. Não disse nada. Sorri. E recordei-me dos meus tempos em que fui aluno da professora Gilda!
Hoje, ainda guardo o abraço de há 30 anos para lhe entregar. Por enquanto, fica o simples obrigado. Tomara que todos os meninos e meninas tivessem uma professora Gilda nas suas vidas! Não há mais nada a dizer. Ficam as memórias. Até sempre, e que a tabuada do ratinho nos volte a juntar! Melhor das sortes, professora.