Filipe Gonçalves
Filipe Gonçalves
Hoje apetece-me escrevinhar sobre bordados. Não um qualquer, nem o que se promove lá fora. Mas o bordado feito por grandes artesãs da freguesia do Estreito de Câmara de Lobos.
Artesãs como a minha mãe, tias, avó e outras tantas. As verdadeiras artistas da linha e do dedal! Que tinham o bordado como único sustento da vida. Uma sina traçada por um fado qualquer.
Tenho saudades de ver e ouvir alguém a se lamentar da dificuldade de fazer caseado ou da facilidade do ponto-de-corda. De ser um às a bordar sombra ou de odiar o ponto Richelieu.
Tenho também saudades de ver o pano de cor neve, de tentar decifrar os desenhos, de azul anil, impressos no que me parecia ser um mero pano. Mas não! Aos olhos das bordadeiras ganhavam tantas formas como utilidades. Seriam toalhas de mesa, naperon ou mesmo peças de vestuário.
Lembro-me do bordado com cheiro a petróleo, do desenho feito no papel de manteiga a servir de modelo.
E para estas mulheres nada podia falhar. Contavam-se os pontos e os negalhos de linhas tinham de respeitar a sequência do desenho.
Nada podia falhar!
Desmanchar era a pior coisa que podia acontecer.
Vi, por vezes, espelhado nos olhos, a agonia com que eram obrigadas a dar cabo de uma semana de trabalho.
Hoje, tudo me cheira a saudade. E até das mais chocantes como da buceta do tabaco da tia da minha mãe. Guardava-o embrulhado num lenço de papel. E depois, sem qualquer pudor, os mesmos dedos que seguravam a agulha, levavam pitadas de tabaco para o interior de cada uma das narinas. E pronto. Naquele momento tinha acabado de saber o verdadeiro sentido da palavra sninfar.
Não me posso esquecer do pequeno cesto de vimes ou do saco grande da Exposição Alemã que guardavam meticulosamente o bordado. E das vezes que refundiavam para encontrar o negalho de linhas, a tesoura ou o dedal que se perdera num qualquer buraco imaginário.
E as invenções que faziam para não perderem os instrumentos de trabalho. Como a tesoura, por exemplo. Para evitar que se perdesse, colocavam uma fita ou cordel por onde entravam o polegar e o indicador. Depois penduravam ao pescoço.
Durante as manhãs de sol tímido ou nas longas tardes quentes, o meu olhar de menino irrequieto brilhava ao ver a habilidade com que aquelas mulheres manuseavam a agulha.
Tudo era arte e tudo obedecia a um ritual. Muito exigente.
E apesar de o bordado ser coisa de mulher, em casa não havia essa distinção. Se houvesse interesse e vontade ainda sobrava tempo para ensinar.
O polegar e o indicador seguravam com firmeza e elegância a agulha.
Mas o mais difícil mesmo era enfiar a linha.
Os óculos descaiam na ponta do nariz para ver “ao perto”.
E mesmo assim, ainda havia quem humedecesse com saliva a ponta da linha e cortava com os dentes para facilitar a colocação no buraco da agulha.
As mulheres sentavam-se na soleira da porta ou nas “passadas”. Se o Sol apertasse, ficavam debaixo da sacada, mas iam mudando de posição à medida que o sol baixava.
As conversas iam bater ao mesmo. Os pequenos que andavam nos estudos na cidade. Da Maria que entrou para casar. Do José que embarcou. Da agência que pedia pressa no bordado. Ou da esperança de vir com aumento.
Bordar era também um ato social. As irmãs iam a casa das outras irmãs e aquelas tardes rendiam, mais pareciam uma maratona de 24 horas a bordar. A ver quem chegava primeiro à marca feita com linha.
As cunhadas iam a casa das outras cunhadas nem que fosse para mostrar o que já tinha sido feito; ou lamentar-se do marido que saiu de casa para o trabalho sem matinar.
Havia as que fugiam para escapar à sina de ser bordadeira. E outras que só sabiam bordar.
A compor este cenário de mulheres artistas havia um fiel companheiro em comum: o rádio a pilhas.
Tinha de estar sintonizado numa estação que passasse música selecionada pelo ouvinte.
Do fado, à música do Teixeirinha; do “Carro preto” do Jorge Ferreira às “24 rosas” do José Malhoa tudo era pretexto para entreter as bordadeiras. Na minha altura o Posto Emissor do Funchal tinha a Estação Rádio Madeira como concorrência.
Hoje o fado é outro. As poucas bordadeiras que existem na zona são escravas de uma arte luxuosa. Roça a escravatura, atrevo-me a afirmar.
Mas sei que tudo era feito com brio. E com orgulho. Sempre foi assim, e assim deveria ser. Em tudo. Não apenas no bordado!