Paula Noite
Paula Noite
Começava já ali no sítio da Achada Grande. Meia tarde.
Piiiiiiiiiiiiiii! O apito estridente há muito aguardado e que movia toda a freguesia de São Jorge.
A pequenada subia ao terraço, esticando o pescoço, na ponta dos pés, para ver chegar a Biblioteca.
Era uma «carrinha» fechada, cor de tijolo, com a inscrição em gordas letras brancas «Biblioteca Itinerante Calouste Gulbenkian nº 49». Um carro a abarrotar de livros, com mil e uma histórias para desvendar.
Corríamos, éramos muitos, de saco na mão, meia dúzia de livros (não podíamos requisitar mais), com histórias já lidas. Lidas há muito, pois o facto é que as devorávamos.
Frente à igreja, junto ao muro da senhora Gilberta, lá estava ela, a Biblioteca Itinerante.
Ainda não tinha estacionado e nós já estávamos no adro, impacientes aguardando a abertura da porta. Dois degraus separavam-nos da magia.
Subíamos os dois degraus e lá estava o senhor Carlos, homem baixo, de bigode, de semblante risonho, para receber os livros, depois de entregar o cartão de leitor, branco, que empunhávamos orgulhosamente.
«Descarregava» a entrega. Olhávamos então para as prateleiras, cheinhas de livros, em bicos de pés, tentando ler os títulos nas lombadas. Fitas de cores diferentes catalogavam-nos: infantis, de aventuras, para adultos….
Mais ou menos a meio da corredora, de pé, muito atento, lá estava o professor. Era o professor, nem sabíamos o seu nome. Uma figura imponente; homem alto, forte, olhar meigo, de sorriso fácil, que controlava as nossas escolhas.
__ Meninos, a etiqueta vermelha e laranja, não podem tirar, é para adultos!
Esta frase despertava-nos a curiosidade. Por vezes, numa distração dele, tirávamos um e requisitávamos, mas éramos apanhados à saída. Não havia hipótese. Íamos então trocar por outro para a nossa idade.
De novo com meia dúzia de livros no saco, íamos alegres para casa. A biblioteca só voltaria dali a um mês.
Queríamos ler, ler, ler, ler e ler.
Depois do jantar engolido à pressa, íamos para a cama, colchão de palha do trigo colhido no ano anterior, fofinha, pois tinha sido remexida pela manhã.
À luz trémula do candeeiro a petróleo, embrenhávamo-nos nas histórias. Sentíamos que já não estávamos ali. Entrávamos na história, víamos desfilar as personagens, sentíamos como elas.
As suas aventuras, no mar, na montanha ou noutro sítio qualquer de Enid Blyton; com os cinco e os sete vivíamos histórias de descoberta. Muitas vezes fazíamos como eles, montanha acima explorar as imediações; chegando mesmo à Lapa do Ladrão perto da Fajã Alta, tremendo frente à gruta escura, mundo desconhecido onde não estrámos por falta de luz. Emílio Salgari levou-nos a correr mundo. Viajávamos com o Sandokan, o Tigre da Malásia. Com a nossa leitura, descrevíamos o mundo, os continentes, como se lá tivéssemos ido.
A luz trémula e fraca do candeeiro lançava sombras gigantescas que se moviam naquele quarto. Ficávamos arrepiados; parecia que as personagens tomavam forma e saltavam dos livros saltitando ali. Mesmo à nossa frente.
E era um ritual. Mensal. Ir à biblioteca, escolher os livros. E ler. Aqueles trinta dias custavam a passar pois já não havia mais histórias Tínhamos lido tudo. Então, trocávamos uns com os outros. E vivíamos novas aventuras. Até ao mês seguinte.
Lendo, construíamos o cenário da história, as personagens. Num livro, conseguíamos ver o mundo, viajar com ele. Mesmo sentados ali, na média luz, no silêncio da noite, rasgado só pelo piar tardio das corujas que passavam.
Na escola, escrevíamos longos textos onde falávamos das florestas tropicais, descrevíamos animais exóticos, as paisagens do oriente…. Reinventávamos histórias de piratas e ladrões, de princesas, fadas e bruxas.
Porque entrávamos naquele castelo – o livro – onde habitavam as histórias.
O livro, ferramenta de conhecimento, é comemorado em abril: o dia Internacional do Livro Infantil (dia 2) e o Dia Mundial do Livro (dia 23).
Espero que com a comemoração destas efemérides, o livro continue a ser divulgado; que seja sempre uma ferramenta de excelência que alimenta o conhecimento e o espírito crítico, permitindo-nos fazer escolhas responsáveis.
Que todos nós, individual ou coletivamente, possamos contribuir para desenvolver e promover o gosto pela leitura, mesmo numa altura em que impera o digital. Com o espírito daquela Biblioteca Itinerante que, em toda a ilha, mesmo nos lugares mais recônditos, dava a todas as faixas etárias, livre acesso ao livro.