Rosélia Quintal
Rosélia Quintal
Quando me perguntam onde vivo, respondo sempre: na melhor terra da Madeira, no Caniço.
Sem pretensão de qualquer bairrismo, pois cada um gosta do seu canto. Digo, ainda assim, que o Caniço tem a luz, a energia, a força dos lugares bons. Ouvi a alguém dizer que, quando se entra no Caniço, se sente um ar diferente e digo que é verdade.
De facto, esta cidade acarreta em si um misto de campo e cidade, emanado das verduras naturais que se destacam na paisagem , por um lado, e na agitação das gentes, por outro.
Há sempre duas memórias de uma terra, porque o tempo deixa a marca da sua passagem. A memória do Caniço da minha infância nunca se desvaneceu. Quando passamos no centro do Caniço, como já dizíamos no tempo em que ainda não éramos cidade, relembramos o ponto de encontro de outros tempos: a igreja matriz, lugar de ajuntamento, depois da missa das oito, a mais frequentada. Encontro de devoção e de convívio social. Ali, juntava-se o Caniço inteiro: as devotas, os homens de chapéu, as mães, as vizinhas, as catequistas, as casadoiras, a criançada, as famílias. A missa reunia todos os sítios, o Caniço de Baixo para a Cidade, o Caniço de Baixo para Machico, a Assomada, a Pedra Mole, a Vargem, o Castelo, os Barreiros, a Tendeira, os Moinhos…, até algum povo das Eiras, apesar de já ter a sua igreja, uma casa transformada em templo, pois só mais tarde se construiu a nova igreja.
Naquele tempo, trabalhava-se a terra e até me lembro dos barcos de pesca nos Reis Magos, a par das casas de madeira dos senhores do Funchal, que passavam ali o verão.
A escola primária era uma sala no rés do chão de uma casa e as três escolas do meu tempo tinham professoras que, pela sua força de caráter , me ficaram na memória: a D. Teresa , a D. Branca , a D. Eliza. Íamos em bando, livres como passarinhos, para a escola, a pé, pelos caminhos reais, que eram os nossos caminhos da aprendizagem. Ir à escola na cidade, para o liceu, ou par a a então escola industrial, era fazer um percurso de mais de trinta minutos no horário das sete e um quarto, que passava pelo centro do Caniço, descia o Pináculo e parava no Campo da Barca. O regresso a casa era mais animado, quando se deixava passar o horário para vir no desdobra, abreviatura de desdobramento, isto é o segundo autocarro.
As festas religiosas eram vividas com devoção e não faltávamos nem à Festa do Senhor, nem à de Nossa Senhora do Livramento. As romagens eram organizadas a rigor e faziam parte da tradição da freguesia. As raparigas tinham a sua distinção , quando eram nomeadas para mordomas, na festa de Nossa Senhora da Conceição e encomendavam o vestido branco na costureira, com a antecedência necessária para que nada falhasse.
Este é o Caniço que guardo na memória. Seríamos cerca de seis mil caniceiros, conhecíamo-nos mais pelas alcunhas do que pelos nomes e os forasteiros destacavam-se logo.
Éramos campo. Agora somos cidade. Mas não deixamos, orgulhosamente, de ser campo.
O Caniço cresceu, modernizou-se, ganhou mais casas, mais edifícios, mais comércio, mais turistas, mais gente. A paisagem alterou-se , mas a marca natural desta terra impregna o espírito do lugar a tudo o que se renova, continua ali, no meio das edificações: os moinhos, as levadas, os caminhos reais, as ribeiras, as veredas são património que não há de perecer, se tiver a intervenção necessária. E a cultura e o nosso sotaque aqui estão para nos distinguir como marca registada de que não abdicamos.
Amava o Caniço de antigamente! Mas gosto do Caniço de hoje. A pacata freguesia menina e moça deu lugar a uma senhora cidade adulta, imponente, forte e altruísta: comércio, habitação, estradas, escolas, praia, restauração, turismo, tudo isto deu um novo rosto ao Caniço e, em poucos anos, os seis mil caniceiros passaram a conviver, com os mais de dezassete mil forasteiros, que chegaram à nova cidade, vindos de várias partes da ilha, sobretudo do Funchal e do território continental do nosso país. Hoje, somos cerca de vinte e três mil, e orgulhamo-nos de um Caniço moderno, que atraiu tanta gente, permitindo que a nossa qualidade de vida se transformasse grandemente e para melhor.
Os turistas que chegam à Madeira , pelo Porto do Funchal, quando lhes é dado a conhecer os lugares que podem visitar rapidamente, elegem quase sempre o Cristo Rei, monumento imponente do Caniço. E o mais engraçado é que pergunto a muitos funchalenses se costumam ir ao Cristo rei e dizem-me que não. Pois garanto-vos que este é o lugar com mais energia que conheço; não será preciso procurar um estudo científico para descobrir que ali há uma energia esotérica: basta lá estar; e é essa a energia que, atrevo-me a dizer, vindo da Natureza ou do Céu, ou dos dois, se sente no Caniço, quando se percorrem as ruas e ruelas , todas elas com o seu caráter próprio. Se formos ao Serralhal, aos Moinhos, ou à Vista da Igreja, encontramos um espaço mágico de natureza , ali mesmo, e de mar com um horizonte redondo, ao longe; se formos ao centro do Caniço, vamos ao espaço do comércio, da restauração, dos serviços; se formos ao Caniço de Baixo, temos a praia, as promenades, os hotéis;
O Caniço tem uma identidade construída na diversidade dos lugares e das gentes, mas há uma característica que não se demarca dos caniceiros: se és do caniço, és da terra das cebolas! E pronto! Até disso recebemos uma energia que todos os biólogos reconhecem como importante para uma vida com saúde e energia. Viva o Caniço!
( Perdoem-me os leitores: a melhor terra da Madeira!)