Sónia Gonçalves
Sónia Gonçalves
Hoje partilho convosco memórias sobre alguns dos contrastes que encontrei, no início da década de 90, entre a Madeira e a terra onde nasci, a Venezuela. Havia-os a vários níveis: comerciais, sociais, políticos, económicos e culturais. Vou focar-me no primeiro.
Vivia em Caracas, uma grande cidade onde, ao contrário de hoje em dia, a oferta comercial abundava. Os centros comerciais proliferavam como cogumelos. A um minuto de casa, tinha um CADA, um hipermercado que oferecia uma enorme variedade de produtos, algo muito semelhante ao que as nossas grandes superfícies nos disponibilizam atualmente.
Ao sábado, costumava ir com a minha mãe ao Mercado Municipal de Quinta Crespo, onde os feirantes vendiam artigos de todo o género, alguns de qualidade. Sem querer abordar a problemática do encerramento da feira do Santo da Serra, esta nada tinha a ver com aquela. Pelo menos assim a recordo…
Os shoppings disponibilizavam-nos lojas de pronto-a-vestir e de todo o tipo de artigos para o lar. Comprávamos os bens de primeira necessidade, e não só, com tal naturalidade que, quando viemos morar para a Madeira, mais propriamente para o Jardim da Serra, ainda que já tivéssemos contactado com a realidade regional em períodos de férias, ficámos um pouco surpreendidos com o facto de a oferta ser tão reduzida. Talvez por isso os meus pais não se contiveram quando encheram vários contentores com mercadorias. Alguma escassa por cá, de facto. Outra nem tanto. Mas, antes deles, familiares e amigos, quando regressaram, fizeram o mesmo. Como tal, era imperioso seguir o exemplo. Algumas das relíquias que trouxeram na altura ainda sobrevivem, tal foi o stock. Vê-las em uso na casa dos meus pais trazem-me inevitavelmente algumas memórias daqueles tempos.
No Jardim da Serra, as compras de artigos essenciais podiam ser feitas na Cooperativa, um minimercado que ainda existe, embora com outro “rosto”. Também as mercearias – as chamadas “vendas” – ofereciam um vasto leque de produtos e a possibilidade de anotar no rol, para pagamento no final do mês, juntamente com eventuais consumos no bar.
No entanto, quando era necessário adquirir outros bens, como tapetes, toalhas, lençóis, colchas, édredons e afins, recorria-se frequentemente a uma vendilhona (denominada de “vendilhoa”). Ainda me lembro bem de uma delas, continental, com sotaque nortenho, que era capaz de ir embora e deixar várias peças para apreciação. Não adiantava desculpar-se com a falta de dinheiro porque a resposta era sempre a mesma: “paga quando puder”. Mais flexível do que qualquer instituição de crédito, os pagamentos podiam ser faseados e adiados, sem qualquer problema, desde que fossem feitos. Os preços, naturalmente inflacionados, tinham de ser negociados. Não havia uma data certa, mas por norma a visita acontecia de quinze em quinze dias, pois, para além das vendas circunstanciais, algumas jovens compunham o seu dote. Desde logo, pedi aos meus pais para não me comprarem nada porque não tencionava levar dote, se algum dia cassasse. E, de facto, apesar dos conselhos da minha mãe, consegui que a minha vontade fosse cumprida. O argumento foi ser “esquisita” e não saber se ia gostar, mais tarde, do que pudéssemos comprar. Curiosamente, vendedores deste género ainda continuam a fazer negócio na freguesia. E devem ter sucesso, a avaliar pela sua persistência.
Quanto a lojas de pronto a vestir, as tentativas de manter este tipo de comércio na freguesia acabaram sempre por se revelar falhadas. Também no Estreito de Câmara de Lobos a oferta era reduzida. Aliás, era-o em toda a ilha quando comparada à diversidade que tinha em Caracas…
Talvez por isso, na altura, eu e tantos outras venezuelanas não passávamos despercebidas com as nossas calças justas e roupas com lentejoulas, brilhantes e rendas. Os olhares críticos fizeram-me deixar de lado, rapidamente, todo o vestuário. “Em Roma, sê romano”.
Apesar de algumas vezes ir às compras “à cidade”, até estudar no Funchal, muitas vezes as indumentárias eram mandadas fazer na costureira. É que não havia grandes opções.
Hoje, quando precisamos de adquirir bens de primeira necessidade e outros artigos, nem nos lembramos como era há não muito tempo. Nem equacionamos como seria se não tivéssemos acompanhado a evolução dos tempos…