Paula Noite
Paula Noite
Estava ali desde há dias. Uma árvore coberta de um véu branco. E erguia-se, orgulhosa e bela, como uma noiva vestida de branco.
Um véu branco que me fez retroceder no tempo. Em que a criançada brincava na rua. Em que sabíamos o nome e o sabor das ervas e dos frutos. O cheiro da terra molhada e o sabor da chuva.
No tempo em que as árvores vestidas de noiva se erguiam por entre os trigais.
E nós corríamos naquela imensidão verde, pisando-a por vezes, o que fazia brotar a ira dos adultos, pois acamava o trigo.
Saltávamos de horta em horta, procurando os frutos ainda tingidos de verde – os damascos, as pêras tenras de São Jorge e as ameixas. O primeiro a chegar encarrapitava-se orgulhosamente em cima da árvore, mordendo o fruto ainda esverdeado, fazendo logo depois uma careta.
E os outros avançavam, esticavam os braços e disputavam os frutos mais maduros.
Depois lá íamos nós em busca de outra árvore; no intervalo, procurávamos os cocos de flor amarela (nós sabíamos o nome das ervas; o nome e o sabor!) e roíamos os pedúnculos enquanto nos aproximávamos do damasqueiro.
Descobríamos as papoilas que vitoriosamente se erguiam entre o trigo, manchas vermelhas reluzindo ao sol.
O mesmo sol que estendia os seus raios sobre o trigal vigiado por nós, e que de dia para dia ficava cada vez mais loiro. Amadurecia. Pequenos e grandes, iam todos apanhá-lo. De manhã cedo, antes que o calor apertasse lá estávamos nós. Da raiz à espiga, tinha quase o nosso tamanho.
Quando tínhamos a mão cheia, colocávamos tudo muito direitinho, raízes bem alinhadas, numa “gavela”.
Os homens, com a sua força, munidos de uma foice enorme cortavam, gavela a gavela, e ia crescendo o molho de restolho, que serviria para “abafar” as casas.
Entretanto, chegava a máquina que iria debulhar o trigo de toda a gente daquele sítio.
Puxavam a corda e ela começava a trabalhar, inundando os ares com um ruído infernal.
O trigo, em gavelas, era jogado lá para dentro, num movimento certeiro e contínuo. E a saruga voava num ritmo frenético, batendo no nosso rosto, embrenhando-se nos nossos cabelos, espalhando-se pelo chão de terra batida que num instante passava de castanho a creme.
Quando acabava a debulha, fazia-se o balanço do trigo debulhado e cobrava-se a percentagem “para a máquina”. E era então que alastrava o silêncio, quase pesado, depois daquela azáfama.
Sobre os ombros, as sacas iam a abarrotar de grão. O pão do ano inteiro ia ali.
Nos dias de sol, os grãos eram espalhados sobre as cobertas e os tapetes tecidos, para secarem. Eram guardados no final da tarde, unindo ponta com ponta do tapete e da coberta, para no dia seguinte serem postos novamente ao sol.
O trigo, fartura para todo o ano, era guardado numa arca de madeira e levado numa saca de linho branco, imaculado, ao moinho da Achadinha ou ao da Fajã Alta, movidos a água. E nós observando a mó que rodopiava e que como um mágico moía o grão, saíamos já brancos, enfarinhados, mas felizes.
O adro da igreja também se vestiu de festa. O chão cobria-se de flores, como se de um tapete estendido se tratasse. E os arcos já estavam prontos também. Eram as canas, dobradas, onde se amarravam os verdes e as flores em homenagem àqueles que naquele dia celebravam o seu casamento.
Os vizinhos e amigos, enfileiravam-se, nos dois lados, com uma bandeja de trigo na mão, oferta para os noivos, Sobre ela, pétalas de rosa que exalavam um aroma que ainda hoje recordo. E na outra mão, um punhado de arroz.
Finalmente saíam os noivos, de braço dado. Ela de longo vestido branco, grinalda e véu. Ele de fato negro, gravata. Contraste de cores, mas a mesma expressão radiante de felicidade. Erguiam-se então os braços, nas mãos as pétalas de rosa e, ao mesmo tempo como se estivessem sincronizados, desejavam felicidades aos noivos e atiravam-nas juntamente com o arroz. Desciam devagar sobre eles, num bom prenúncio de felicidade duradoura.
Familiares e amigos apareciam então com cestos ou tabuleiros onde, sobre uma toalha alva, nos espreitavam os bolos de noiva.
Em cada bandeja colocavam um ou dois bolos, conforme as famílias (conhecíamo-nos todos!).
E o cheiro. A erva-doce. E nós, mais pequenos, púnhamo-nos na ponta dos pés, para sorrateiramente e ali mesmo beliscar os bolos de noiva que eram feitos quando havia casamentos.
Bolo de noiva muito nosso, amassado e bem amassado com a farinha da terra. Enquanto levedava, beliscávamos a massa, às escondidas. Depois de tendidos eram colocados no forno a lenha, bem alinhados como um exército.
Quando já estavam morenos, como nós dizíamos, eram tirados com uma pá enorme e postos numa toalha sobre a mesa.
Nós ajudávamos a untá-los com manteiga para ficarem mais tenros, mais brilhantes e mais gostosos. E a mãe passava-nos a mão na cabeça, num agradecimento, com muita ternura e sem pieguices.
Hoje os trigais não abundam.
O moinho da Achadinha ainda lá está para moer o trigo daqueles que, teimosamente (e bem) o continuam a cultivar.
O trigo que já não é oferecido aos noivos numa bandeja, coroado de pétalas de rosa. Mas que, depois de moído, continua a ser a “farinha da terra” para os bolos de noiva.
Que não faltam nos casamentos em São Jorge.
E de vez em quando na nossa mesa. Mesmo sem casamento.
Porque são as lembranças que não esquecemos. Lembranças que têm sabor. Que também têm cor. E cheiro a erva-doce.