Susana Fernandes
Susana Fernandes
Por estas alturas já eu tinha percorrido muitas das ruas da freguesia, juntamente com outros vizinhos que constituíam o grupo.
Batíamos porta a porta e com todo o à vontade ou, por vezes, quase a medo e timidamente, pedíamos a oferta para a celebração da novena.
Umas vezes era para a novena da Cruz, a do meu sítio. Noutras, já em jovem fazíamos o mesmo para a novena da Mocidade, a dos jovens. Era o primeiro passo na preparação da Festa de São Roque, a festa em honra do padroeiro da nossa Freguesia.
Eram necessárias várias tardes para estes peditórios e todo o dinheiro reunido era depois contabilizado para ver o que seria possível fazer. Dinheiro para a festa religiosa e, se restasse uma quantia suficiente, então teríamos o arraial no adro da Igreja. Com uma Banda de Música ou com o “conjunto” de músicas mais modernas e que animariam mais as festas.
Em cada sítio havia pessoas responsáveis pela preparação da sua novena. E a estrela da festa não era o cartaz musical, mas sim o padre que pudéssemos convidar para fazer o sermão mais eloquente e interessante, na missa.
Sim, era um pouco diferente da festa que agora está a ser preparada. Não havia cartaz, nem uma organização quase profissional. Por vezes era só mesmo na véspera que podíamos confirmar se haveria música e foguetes. Mas todos queríamos que houvesse. Não havia festas em todo o lado, como agora. Não tínhamos muitas escolhas, ou quase nenhuma mesmo. Apesar de ali ao lado, na freguesia do Monte, também se estar a preparar as novenas e tudo o que era necessário para um arraial muito concorrido por romeiros dos vários recantos da ilha.
Voltávamos a bater porta a porta, para pedir flores para decorar a Igreja. Lembro de ir de mãos vazias e regressar com o regaço cheio de flores que a bondade dos paroquianos permitia. Alguns abriam as portas e diziam: podem apanhar todas as que estão no jardim. São todas para São Roque.
A nossa alegria misturava-se com a beleza e o cheiro das flores que depois eram colocadas a preceito na igreja. Sem decoradores. Mas com o empenho de algumas mãos mais jeitosas e generosas, que quase não dormiam, passando a noite quase toda nessa tarefa. Depois havia que ensaiar o coro, para as nossas vozes serem um pouco afinadas e dar outra solenidade à missa. Umas vozes mais apuradas, outras nem por isso, mas na hora, soava-nos lindamente e sorríamos felizes a cantar ao nosso padroeiro.
O colorido do arraial enchia os nossos olhos, quando crianças. Eram os tabuleiros de brinquedos coloridos e diversificados, os colares de rebuçados, o algodão doce ou as pipocas que se espalhavam nas duas ou três barracas dos feirantes.
Mas, tínhamos de aguardar o fim da festa, para então, o pai comprar os rebuçados enormes. Aqueles que só havia no arraial. Amarelos, rosa, brancos, embrulhados em papel esbranquiçado, quase transparente e que nos enchiam a boca quando já íamos a caminho de casa. Mesmo no fim da festa, depois do pai e os outros senhores da confraria fecharem a casa de chá, arrumarem tudo numa sala da catequese e verificarem as contas.
Era um orgulho se houvesse mordomo lá em casa. E houve muitas vezes, ou sempre. A fé do pai fazia com que não virasse costas a São Roque e era com essa fé que agradecia as graças que tínhamos na nossa casa. E a bandeira era orgulhosamente erguida e ficava a esvoaçar no nosso quintal, indicando a existência de um mordomo.
Ah, lembro do ano em que quase nas vésperas da Festa, não havia “cabeça”. A festa não se ia realizar! Os mordomos não eram muitos e não havia aquele que seria responsável pela organização. Seria uma tristeza.
O “cabeça” era quem receberia em sua casa, o Sr. Padre, os mordomos e a banda de música, para poderem comer e beber antes de, todos juntos, encaminharem para a Igreja onde seria celebrada a missa em honra de São Roque.
De repente, tudo isso foi feito lá em casa! Que orgulho! O pai estava felicíssimo. E sabia que a sua fé era poderosa. Que a sua fé iria ajudar a ter nesse dia uma mesa abundante e rica para todos os convidados, bem como teria o ano inteiro o necessário para os seus filhos!
E o fogo estalava ali junto à nossa casa, e a banda de música atravessou a cozinha e subiu as escadas para o terraço, sempre a tocar. O Sr. Padre estava feliz e com o mesmo espírito, seguiram também os mordomos, para onde estava a mesa com tudo o que era necessário para esta festa. O fotógrafo levou anos a falar do gostoso milho frito que nesse dia foi servido lá em casa. Havia laranjada e tantas outras coisas que nos deixaram extasiados e orgulhosos!
Sim, nesse ano a festa foi ainda mais especial! E o pai deu-nos novamente a lição de que a Fé é capaz de mover montanhas!
Hoje a festa de São Roque é planeada e organizada com muito tempo de antecedência. Há um cuidado e esmero na sua preparação. É diferente?! Sim, é diferente. Há cartaz, há site, há publicações na internet. Tudo feito de uma forma mais moderna e que acompanha as exigências de um arraial muito mais forte e de grande envolvência social.
Mas há algo que, acredito, se mantém inalterado. A fé que os move!
A mesma fé que faz com que há muitos anos esta festa seja preparada com carinho e a crença de que São Roque, o nosso Padroeiro protege e guia os seus paroquianos não só nos dias das festas, mas todos os dias do ano.