Celina Freitas
Celina Freitas
Há muitos anos que não ando à boleia.
Mas, verdade seja dita, também não me restam muitas saudades desse tempo, principalmente depois da nossa mãe descobrir que fazíamos essas ‘aventuras’.
Para apaziguar a tempestade, lá lhe explicávamos que não tinha mal nenhum em andarmos à boleia, porque a Senhora Agostinha, a nossa vizinha de 50 e muitos anos também andava. Tudo isto por causa do autocarro 36, ou melhor, porque não chegávamos a tempo de ‘apanhá-lo’.
A Freguesia de São Gonçalo vai do mar à serra, por isso, tem zonas muito próximas do Funchal e tem as zonas altas, fronteiriças à Camacha, Santa Maria Maior e Caniço. A falta de transportes públicos e, pior do que isso, a falta de estradas, sempre foi uma das principais aflições das pessoas que vivem em certas zonas da nossa freguesia.
Durante muitos anos era a carreira nº 36, Lombo da Quinta, que ainda por cima parava no sítio da Boa Nova (São Gonçalo), abaixo do Telheiro de Zinco, que servia a população que vive em São João Latrão, nas Pedras, no Lombo e Ribeira da Quinta, Tanques e Palheiro Ferreiro. Se bem que estes últimos sítios tinham a sorte de ter os autocarros da Camacha e a carreira nº 37, Palheiro Ferreiro, (infelizmente) com apenas quatro viagens diárias.
Agora imaginem, em tempos como este, com chuva, vento e nevoeiro, o que era a vida das pessoas que tinham de subir e descer caminhos, veredas e ladeiras, para se deslocarem para os seus empregos, escolas ou até mesmo idas ao médico. E ir às compras ao Mercado dos Lavradores e à mercearia?! Era uma verdadeira odisseia, chegar a casa com os víveres que tanta falta faziam. Nisso, eu e os meus dez irmãos ainda tínhamos sorte: visto sermos uma grande ‘casa’ de família, a minha mãe ia à Mercearia do Pelourinho (mais tarde passou a ir à Mercearia, onde hoje é a famosa Pharmácia do Bento), comprar provisões para o mês inteiro e o meu pai falava um carro da ‘praça’, que vinha trazer as compras até à porta da nossa casa (Caminho dos Pretos).
Era nesse tempo que eu, os meus irmãos e vizinhos ‘desesperávamos’. Saíamos de casa quase sempre atrasados, ficávamos encharcados e ainda por cima perdíamos o autocarro!
Foi num desses tristes dias que encontrei a Senhora Agostinha. Fiquei perplexa com a sua ousadia (porque a minha mãe dizia-nos sempre para não falar com estranhos, muito menos apanhar boleias de desconhecidos!) e passei a admirá-la e, sobretudo a imitá-la!
A Senhora Agostinha, uma senhora muito lutadora, que trabalhava muito e, que era mãe da Tânia, a minha melhor amiga, também andava sempre atrasada e, como já sabia que ia perder o autocarro, começava a pedir boleia logo na saída do Caminho dos Pretos. Por vezes, juntava-me a ela, outras, atrevia-me mesmo sozinha, para não ter falta ao ‘primeiro tempo’. Mas, o pior de tudo, era o regresso a casa… nem imaginam como me custava subir as escadas da prima Clementina, depois de uma manhã de aulas, que terminava com sete voltas ao campo da Escola do Faial, na Visconde Cacongo, e subida da rua até à igreja da Boa Nova (Sagrado Coração de Jesus), para apanhar o autocarro 36.
Mas, quis a boa vontade/necessidade que, os senhores dos Horários do Funchal resolvessem que o autocarro passaria a ir até ao miradouro do Lombo da Quinta, o que já veio facilitar um pouco mais a vida das pessoas.
Anos mais tarde, a abertura da estrada em São João Latrão, até à venda da Senhora Maria, foi uma bênção para os moradores daquela zona, que viram assim terminada ‘a era das garrafas de gás às costas, ladeira acima’. Contudo, nos dias de hoje, ainda se me parte o coração, ouvir alguns filhos dizerem que já não podem levar os seus pais idosos a casa porque estes têm muita dificuldade em subir os degraus ou porque já não têm força para atravessar a vereda. Há ainda aquelas pessoas, com doenças crónicas, que se vêem obrigadas a vender a casa ou a arranjar alternativas para chegar às suas habitações.
Em São Gonçalo, ainda há muito para fazer a nível da abertura e melhoramento de estradas, em São João Latrão, no Caminho das Pedras, na Portada, entre outros. Se não for para a passagem de transportes públicos, que seja ao menos para as pessoas levarem as suas viaturas até mais próximo de casa, permitindo-lhes uma vida mais tranquila, mais digna e feliz, gozando da companhia dos seus entes mais queridos.
Quanto à Senhora Agostinha, ainda no domingo estive com ela, mas não lhe falei no assunto. Gostava de lhe perguntar se ainda existem aqueles ‘anjos’, como ela os chamava, que dão boleia às outras pessoas, fazendo com que cheguem a horas e sobretudo, levando-as a ‘são e salvo’, tranquilizando os corações das mães, que tal como a minha, muito se apoquentam com a segurança dos filhos.