Susana Fernandes
Susana Fernandes
“Vizinha? Está em casa? Ainda tem bilhetes para o carro do Sr. Camacho?…”
Era assim naqueles tempos em que o nosso único passeio de carro era a excursão da paróquia. A ansiedade, o desejo, a antecipação na nossa mente de tudo o que iríamos viver nesse dia de passeio à volta da ilha, fazia-nos vivê-lo, muito antes de acontecer.
Não, o pai não tinha carro, mas era responsável por uma das camionetes que iam na excursão e era um dos muito concorridos. E era bem divertido. Isso lembro bem!
Se a resposta à vizinha era uma “Não, já não há bilhetes”, a deceção tomava conta dela e era com tristeza que voltava para casa. Afinal aquele passeio era o que juntava umas centenas de paroquianos de São Roque, num dia de festa.
Não recordo bem, mas penso que nesse dia a freguesia de São Roque ficava despida da grande maioria dos seus moradores. Poucos eram os que tinham carro particular e que pudessem passear sempre e quando lhes apetecesse. E eram várias camionetes que saiam logo pela manhã para esse grande acontecimento.
Nesse dia a freguesia testemunhava a enorme azáfama, ali por volta das 7h da manhã, quando todos iam chegando junto à Igreja, para ocupar o seu lugar na camionete.
Chegavam com a alma carregada de felicidade e as mãos cheias de trouxas com o farnel preparado pela madrugada fora, que iria ser partilhado pela família, amigos e vizinhos. Depois partíamos. E connosco transportávamos o barulho, as gargalhadas, as cantorias, a alegria.
E São Roque mergulhava num domingo sonolento, podendo repousar ao som do silêncio que o envolvia ao longo desse dia, enquanto muitos dos paroquianos deixavam a beleza da sua freguesia para visitar a beleza dos outros recantos da ilha.
Acordaria mais tarde, já quando o sol se estava a preparar para dormir, mas, de repente, chegavam novamente ao largo do miradouro, junto à Igreja, as camionetes cheias de euforia daqueles mais resistentes e que ainda conseguiam cantar. Outros vinham já a dormir, ou porque o calor do dia os subjugou, ou porque estiveram a provar o vinho dos garrafões dos vizinhos, em género de concurso, a ver qual o melhor, e a essa hora já o corpo tinha cedido.
Mas a excursão começava muito antes de acontecer. Para nós, os mais novos, havia que preparar o reportório de músicas e os instrumentos a levar. Ah, como eram bem aproveitados aqueles cadernos distribuídos pelos partidos nas campanhas eleitorais. Nesses dias ficavam ricos em letras e composições de todas as músicas que conhecíamos e que queríamos decorar.
“Oh Laurindinha vem à janela
Oh Laurindinha vem à janela
Ver o teu amor, ai, ai, ai, que ele vai pra guerra
Ver o teu amor, ai, ai, ai, que ele vai pra guerra
Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir
Se ele vai pra guerra, deixá-lo ir
Ele é rapaz novo, ai, ai, ai, ele torna a vir
Ele é rapaz novo, ai, ai, ai, ele torna a vir
Ele torna a vir se Deus quiser
Ele torna a vir se Deus quiser…”
Esta era uma das canções que não podiam faltar no reportório! Todos a sabiam trautear e nós que éramos crianças, adolescentes, jovens, tínhamos especial gozo ao cantá-la, porque uma das vizinhas tinha o nome de Laurindinha, e retorcia-se toda no canto da sua bancada, quando nós cantávamos isto a plenos pulmões, quase em dedicatória a ela. Sabíamos que não gostava e nós ainda gostávamos mais.
Acelerávamos o ritmo com as “pandeiretas” feitas em casa. Cabos de vassoura cortados, tampas das garrafas de Sumol ou Brisa espalmadas com o martelo e pregadas em grupinhos com os pregos para que o som fosse o mais ruidoso possível. Era um instrumento musical de luxo que nos deixava as mãos doridas e vermelhas de tanto bater.
Hum… e as batatas fritas!? Nada de pacotes de batatas fritas compradas! Não havia nada disso. As nossas batatas fritas eram maravilhosas. Eram caseiras. Eram feitas por nós com tanto carinho. E com essa mesma devoção passávamos o tupperware branco, redondo e grande, pela camionete toda. E todos os que quisessem comiam das nossas batatas fritas feitas em casa nas vésperas. Eram horas em frente à panela de óleo a fritar, depois de outras tantas a descascar as semilhas e com a “máquina” cortá-las em fatias finas. Até isso era um prazer enorme. E todos gostavam das batatas fritas do Sr. Camacho!
“Senhor chofer por favor ponha o pé no acelerador…”